Da Folha – 28/07/2013
O anúncio do programa Mais
Médicos pelo governo federal gerou reação enérgica de entidades contrárias à
vinda de profissionais estrangeiros e ao aumento em dois anos do curso de
medicina.
O professor da Faculdade de Saúde
Pública da USP Paulo Capel Narvai questiona a postura dessas entidades, que
chegaram a entrar com ação na Justiça contra o programa.
Para Narvai, elas agem em
consonância com diretores de cursos privados de medicina que cobram
mensalidades "exorbitantes", "contrariam o interesse público e
fazem refém a socidade".
"Com menos médicos no
mercado de trabalho, maior a remuneração média desses profissionais",
argumenta.
Ex-secretária de Ensino Superior
do Ministério da Educação, a professora da Faculdade de Direito da USP e do
Mackenzie Maria Paula Dallari Bucci acredita que o programa Mais Médicos
desorganiza a orientação de valorizar a residência médica.
Ela é contrária à criação de
vagas propostas pelo Ministério da Saúde. "A criação de 23 novos cursos de
medicina, entre 2011 e 2013, somada à anulação dos cortes de vagas efetuados
nos processos de supervisão de 2008 retiram toda a credibilidade da promessa de
qualidade. A abertura de mais vagas em cursos de medicina não irá proporcionar
a melhoria dos sistemas de saúde locais."
Erro
de percurso
A determinação de criar mais 11
mil vagas em cursos de medicina até 2017 é um erro mais grave do que parece. É
quase inviável que essas vagas tenham qualidade.
O Brasil já teve algumas
faculdades de medicina que eram notórias linhas de produção de médicos
despreparados, que descobriam na clínica as falhas de sua formação, resultado,
majoritariamente, da falta de treinamento prático e supervisão.
A partir de 2006, com a definição
de um novo marco regulatório na educação superior, baseado na avaliação,
criou-se fundamento para maior exigência tanto para autorização como para o
reconhecimento de cursos, combinada com as disposições jurídicas necessárias
para o fechamento daqueles com qualidade insatisfatória, ou pelo menos a
redução de suas vagas.
O instrumento de avaliação para
autorização de cursos de medicina, contendo as condições mínimas para o seu
funcionamento, exige a "disponibilidade de serviços assistenciais,
incluindo hospital, ambulatório e centro de saúde", visando oferecer aos
alunos locais de "prática desde os estágios iniciais".
Essa disposição concretiza
objetivo apontado nas Diretrizes Curriculares Nacionais de Medicina, de 2001:
"A formação do médico incluirá, como etapa integrante da graduação,
estágio curricular", que deve corresponder a pelo menos 35% da carga horária
do curso.
O processo de supervisão de
cursos de medicina realizado pela Secretaria de Educação Superior, em 2008,
para avaliar as deficiências dos cursos com desempenho insatisfatório no Exame
Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) revelou que o que mais explicava
os resultados negativos era a precariedade do internato, nos dois anos finais
do curso, em que se concentra o aprendizado prático. É a fase mais cara e
complexa do ensino médico.
Essa experiência embasou um
redirecionamento da formação médica de fortalecimento da residência. E hoje
esse serviço chegou a locais que até poucos anos atrás eram desassistidos. As
iniciativas do programa Mais Médicos desorganizam profundamente a sua evolução.
Também está em risco a
possibilidade de racionalização da formação médica baseada em estudo sobre a
distribuição geográfica dos médicos no Brasil, que identifique as localidades
realmente carentes e oriente a abertura de novos cursos, mediante chamada
pública.
O Brasil hoje forma, por ano,
cerca de 15 mil médicos. Qual a necessidade e o sentido de quase dobrar o
número de ingressantes? E por que fazê-lo em menos de quatro anos?
A criação de 23 novos cursos de
medicina, entre 2011 e 2013, somada à anulação dos cortes de vagas efetuados
nos processos de supervisão de 2008 retiram toda a credibilidade da promessa de
qualidade.
A abertura de mais vagas em
cursos de medicina não irá proporcionar a melhoria dos sistemas de saúde
locais. Talvez traga algum prestígio às cidades que sediarem esses cursos; há
muitos prefeitos que acreditam, de boa-fé, que a presença de uma faculdade de
medicina valoriza a cidade e cria um fato que depois justificará romarias a
Brasília pedindo hospitais, verbas, pessoal, enfim, toda a estrutura que hoje
falta à saúde pública e que faltará também ao curso nascente.
Mas quem certamente ficará
satisfeito com a perspectiva das novas vagas são as instituições privadas, cujo
retorno financeiro virá não apenas dos cursos de medicina, mas também do ganho
marginal com outros cursos da área da saúde que a instituição ofereça. E depois
desses desacertos, voltaremos a ouvir as velhas promessas de melhoria da
qualidade da educação superior. Esse problema, o país já demonstrou que pode e
quer enfrentar.
MARIA
PAULA DALLARI BUCCI, 50, é professora livre-docente da USP e do Mackenzie. Foi
secretária de Educação Superior (2008-10) e consultora jurídica (2005-08) do
Ministério da Educação
Ponto
de colisão
As lutas pelo direito à saúde se
encontram em um patamar que requer identificar quais são os entraves a seu
exercício.
São insuficientes formulações
genéricas em "defesa da saúde". Muitos que não a reconhecem como
direito também se dizem em sua "defesa" e muitos que alegam
"defender o SUS" veem o sistema público como balcão de negócios.
É nesse contexto que se deve
analisar a preocupante queda de braço entre entidades médicas e o governo
federal desde o anúncio do programa Mais Médicos, cujo objetivo é,
essencialmente, tornar esses profissionais acessíveis à população.
Embora sejam inegáveis as
dificuldades para conseguir acesso a médicos, as entidades insistem em que
esses profissionais não estão em falta. Cabe interrogar por que chegamos a esse
ponto, em que lideranças médicas se recusam a enxergar o que está à vista de
todos e como interesses corporativos colidem com os públicos e nos colocam à
beira de um conflito institucional grave.
Se, como afirmam lideranças
médicas, apenas importar médicos e ampliar a duração dos cursos não contribuirá
para resolver o problema, também é certo que não ajuda em nada apenas ser
contra o programa e declarar "persona non grata" o ministro da Saúde.
Não me parece que o médico Alexandre Padilha seja merecedor de tamanha
grosseria, uma vez que está a lidar com um problema estrutural, cuja origem
precisa ser elucidada para que se encontrem soluções, superando-se ações
emergenciais.
O quadro atual resulta de vários
fatores, entre eles a pressão das entidades médicas nas últimas décadas contra
a ampliação de vagas. Com menos médicos no mercado de trabalho, maior a
remuneração média desses profissionais.
Essa posição sempre teve decidido
apoio dos proprietários de cursos médicos privados, cujas mensalidades destoam
das de outros cursos, mesmo os da área da saúde.
Interesses da categoria médica
vêm se aliando, historicamente, aos propósitos dos que comercializam a formação
médica, oferecendo vagas a preços exorbitantes. Ambos, corporativismo médico e
comércio da educação, ainda que apareçam emoldurados por falas grandiloquentes,
nada têm a ver com os direitos à educação e à saúde e, contrariando o interesse
público, fazem refém a sociedade.
Para dar consequência às
exigências das frias noites de junho, é preciso abaixar logo a temperatura do
conflito entre entidades e governo. E, com urgência, encontrar soluções para
que mais brasileiros tenham acesso aos médicos de que necessitam e,
concomitantemente, para que mais vagas públicas sejam abertas em cursos
médicos.
Será oportuno rever os valores
das mensalidades dos cursos privados de medicina. Um bom começo seria fixar
limites superiores. Elas poderiam, por exemplo, ser equivalentes às dos cursos
de sânscrito ou de língua portuguesa.
Convém também avançar na
institucionalização do SUS. Para isso, é indispensável respeitar conselhos e
conferências, criar a carreira nacional do SUS e vinculá-la aos cargos de
direção dos serviços, fixar o valor do financiamento federal e defender o SUS
como instrumento para assegurar um direito social, não para fazer negócios com
direitos.
PAULO
CAPEL NARVAI, 58, é professor titular e chefe do Departamento de Prática de
Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da USP
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