segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Debates – Legalização da maconha

Lobby do tabaco na Justiça é nefasto e atrasa o país (Entrevista)

Da Folha – 07/02/2014

A partir de junho, uma brasileira terá a tarefa de organizar as discussões e práticas mundiais relacionadas às políticas antitabagistas.
A carioca Vera Luiza da Costa e Silva, 62, estará à frente do secretariado da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, tratado internacional negociado sob patrocínio da OMS (Organização Mundial da Saúde) em vigor desde 2005. Nos próximos quatro anos, ela trabalhará na sede da OMS em Genebra.
Coordenadora do Centro de Estudos sobre Tabaco e Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública (Fiocruz), Silva critica o que vê como "lobby nefasto" da indústria do tabaco no Judiciário, que conseguiu suspender o veto da Anvisa aos aditivos de sabor.
Ela defende que o Brasil se articule para barrar o comércio ilícito de cigarros e, para isso, vê como fundamental o engajamento do novo ministro da Saúde, Arthur Chioro.

Folha - Como a sra. avalia a atuação do Brasil no combate ao tabagismo?
Vera Luiza da Costa e Silva - Tem avançado muito no controle do tabagismo. O país não se furtou a fazer o que precisava, mas algumas áreas estão um pouco lentas.
Uma é a regulação da lei [federal] de 2011 que cria ambientes livres de fumo e encaminha a proibição da publicidade nos pontos de venda.
Outra é a definição do papel regulatório da Anvisa na área do tabaco, que vem sendo questionado. É preciso que haja uma mensagem clara do Judiciário de que a Anvisa pode e deve regular todos os produtos legais de consumo que afetam a saúde do brasileiro.
Uma terceira é a interferência da indústria do tabaco sobre as políticas governamentais. A indústria possui lobistas para impedir que regulações mais restritas passem, e vem tentando corromper o Judiciário para impedir que a proibição dos aditivos [estabelecida pela Anvisa em 2012] entre em vigor. E ela precisa entrar. É pelas nossas crianças que temos que fazer isso.
Esse lobby da indústria é nefasto e coloca o país para trás. Ele torna o Brasil cada vez mais subdesenvolvido.

Há chances de o país avançar nas políticas em ano eleitoral?
Ainda há tempo hábil para que essa regulação [dos ambientes livres de fumo] seja assinada [pelo governo federal]. Até onde eu sei, essa regulamentação já está pronta. É uma questão de se dar prioridade a isso. A Anvisa apoiou, no final do ano, a adoção das embalagens genéricas do cigarro, mas qual é a chance de uma medida polêmica como essa prosperar?

Como classificar as políticas antitabagistas brasileiras no contexto internacional?
Apesar da pressão da indústria no Brasil, continuamos na vanguarda. Temos desafios: o comércio ilícito do tabaco, ajustar o tratamento dos fumantes e não se deixar influenciar pelo lobby da indústria, que usa grupos de fachada. Ela tem usado plantadores de fumo, como se [adotar medidas restritivas ao tabaco] fosse influenciar a política econômica, diminuindo a demanda pelo produto e a oferta de trabalho. Não é verdade: a maior parte do fumo brasileiro é exportado.
O governo tem que estimular as políticas de diversificação e substituição das culturas. Isso é um grande passo.

Qual é o peso do comércio ilícito? E como o protocolo sobre o tema, adotado na Convenção-Quadro, pode ajudar?
O comércio ilícito é um problema que transcende fronteiras. O Brasil é o maior exportador de fumo em folha do mundo e exporta para países vizinhos, que têm, na divisa com o Brasil, fábricas que manufaturam os cigarros, que voltam ilegalmente para o Brasil, estimulando o consumo pelo preço mais baixo e aumentando a criminalidade.
Não vai haver solução sem que o país se articule com Uruguai, Paraguai, Argentina e Bolívia. A tônica do protocolo de comércio ilícito [adotado no âmbito da Convenção-Quadro, mas que precisa ser ratificado por 40 países para entrar em vigor] está na cooperação internacional.
É muito importante que esse protocolo entre em vigor o quanto antes para que se criem sistemas de monitoramento do caminho desses produtos de tabaco. É nisso que está a necessidade de o Brasil manifestar seu apoio ao tratado e ratificar o tratado.
O novo ministro da Saúde [Arthur Chioro] tem de incentivar esse tipo de processo. Se a Saúde não fizer pressão, outros setores dificilmente vão ser convencidos a fazer isso.


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A ousadia de Mujica (Reportagem)


Da Carta Capital – 01/01/2014

Em um episódio de 1995 do desenho animado Os Simpsons, Homer, o patriarca da família e símbolo da classe média americana, localiza, em um globo terrestre, o pequeno Uruguai, ao sul da América do Sul, e erra a pronúncia do país: “You Are Gay”. Quase duas décadas mais tarde e após três anos de um governo de esquerda, o ex-guerrilheiro tupamaro José “Pepe” Mujica deu a nosso vizinho de 3,4 milhões de habitantes tanto destaque no mapa que até Homer, sinônimo no Brasil do telespectador médio do Jornal Nacional da Rede Globo, seria hoje capaz de reconhecê-lo.
Mujica é, segundo definições mundo afora, “o político mais incrível”, “o líder que faz sonhar”, “o presidente mais pobre do planeta”, que abriu mão de 90% do salário e preferiu morar em sua chácara em vez de na residência oficial. A revista americana Foreign Policy o listou entre os cem pensadores mais importantes de 2013, por redefinir o papel da esquerda no mundo.
“Quando o presidente venezuelano Hugo Chávez morreu, em março, muitos acharam que o crescente movimento de esquerda latino-americana morreria com esse populismo de camisas vermelhas. Poucos meses depois, entretanto, o movimento encontrou um novo e pouco provável guia em José Mujica, presidente do Uruguai”, anota a publicação. “A controversa agenda de Mujica, que o fez ganhar tanto amigos quanto detratores, gerou um novo debate sobre o futuro da esquerda latino-americana. Ao estabelecer uma ruptura entre o claro antiamericanismo de Chávez e também com o profundo conservadorismo social da América Latina, Mujica aponta para um possível caminho futuro para seus camaradas.”
Pepe despertou uma verdadeira Mujicamania até mesmo entre quem tenta esquecer seu passado de guerrilheiro que sequestrou e assaltou bancos durante a ditadura uruguaia e que passou 10 de seus 14 anos de prisão na solitária, edulcoração semelhante à produzida pela mídia mundial em relação a Nelson Mandela (a propósito, ler a análise de Antonio Luiz Coelho da Costa a partir da página 54).
Mujica não dá, porém, sinais de pretender interromper os seus projetos “revolucionários”, em nome da conciliação ou da governabilidade. Na campanha presidencial, nunca amenizou o discurso para conquistar ou acalmar o eleitorado conservador. “Se chego a segurar o manche, vou expor minhas ideias. Vou propô-las e, se não aceitarem, que me apresentem outro projeto”, disse, em longa entrevista ao veterano jornalista uruguaio Samuel Blixen no livro El Sueño de Pepe. “Nós, os esquerdistas, vivemos tempo demais prisioneiros de um marxismo mecanicista, que não é culpa do velho Marx, mas do que veio depois.”
Postas em prática, as ideias surpreendem o mundo pelo viés progressista. Enquanto, no Brasil, religiosos chantageiam e encurralam o governo, na terra de Mujica, só neste ano, foram legalizados o aborto até o terceiro mês e o casamento gay. Para culminar, a legalização da maconha, aprovada pelo Senado por 16 votos a favor e 13 contra na terça-feira 10 e que agora vai à sanção do presidente, é uma experiência única. O Estado controlará a produção e a comercialização em farmácias a 1 dólar o grama. Os usuários poderão cultivar até três pés da planta em suas próprias casas e organizar cooperativas de consumo.
O objetivo é acabar com o tráfico da erva no Uruguai e reduzir a criminalidade. Segundo o presidente, a maconha não será legalizada, mas regulada, em substituição a um mercado à margem das regras. A oposição criticou a transformação do país em um “laboratório” e ameaçava recorrer a um referendo para derrubar o projeto. Rival de Mujica em 2009, o ex-presidente Luis Alberto Lacalle ironizou e sugeriu a criação de uma “Petrobras da erva”.
A Junta Internacional de Fiscalização de Estupefacientes, órgão das Nações Unidas responsável por supervisionar o cumprimento de convenções sobre drogas, condenou a decisão e afirmou que a lei viola os tratados internacionais assinados pelo Uruguai. Em nota, Raymond Yans, presidente da entidade, declarou “surpresa” com a aprovação e se reportou a uma convenção de 52 anos atrás. “O objetivo principal da Convenção Única de 1961 é proteger a saúde e o bem-estar da humanidade. A Cannabis está submetida a controle por esta convenção, que exige dos Estados signatários limitar seu uso a fins médicos e científicos, devido a seu potencial para causar dependência.”
Um documento interno da ONU, divulgado pelo jornal britânico The Guardian no começo de dezembro, revela, porém, uma insatisfação crescente dos países que assinaram a convenção. A Noruega e o México criticam os maus resultados da guerra às drogas e da proibição. Para a Suíça, a repressão tende a afastar os consumidores dos serviços de saúde pública que previnem as doenças transmissíveis pelo sangue. O Equador solicitou “esforços especiais” no sentido de reduzir a demanda.
Diante das críticas, Mujica ressaltou o caráter inovador da legislação e manteve-se firme. “Vamos ter dificuldades? Certamente, mas a quantidade de mortos por ajustes de contas por causas vinculadas ao narcotráfico representa uma dificuldade muito maior”, disse, em entrevista ao uruguaio La República. “Iniciamos um caminho para combater o vício por meio da educação e identificando os que consomem e tendem a se desviar do caminho. Einstein dizia que não há maior absurdo que pretender mudar os resultados repetindo sempre a mesma fórmula. Por isso queremos experimentar outros métodos.”
Tanto o líder uruguaio quanto sua mulher, a também ex-tupamara e senadora pela Frente Ampla Lucía Topolansky, confessaram ter pouco ou zero conhecimento sobre a maconha até assumirem o projeto pela legalização. “Nós dois, como temos certa idade (ela, 69, ele, 78), éramos perfeitos ignorantes no assunto. Éramos. Agora não”, disse Topolansky, cotada para o posto de vice na chapa do provável candidato à sucessão de Mujica, o ex-presidente Tabaré Vázquez.
Quando a notícia sobre a legalização apareceu nas agências internacionais, surgiram as primeiras reações contrárias na vizinhança. No Peru, especialistas temiam que a liberação aumentasse a produção de drogas no país de Ollanta Humala. Segundo levantamentos de especialistas, a maconha a ser produzida pelo sistema estatal uruguaio não daria para cobrir nem a metade da demanda de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. “O Uruguai, minúsculo em população, pode funcionar como um ‘país-laboratório’ perfeito. O potencial impacto negativo para os países vizinhos, se vier a acontecer, deverá ter proporções muito pequenas”, opina o psiquiatra Luís Fernando Tófoli, professor da Unicamp. “Ao se colocar em perspectiva o tamanho do passo dado na direção de poupar as vidas perdidas na guerra contra o tráfico, é um risco que vale a pena ser corrido.”
Houve quem recebesse a brisa vinda do Sul com franco entusiasmo. O ministro das Relações Exteriores, Luis Almagro, contou que as embaixadas uruguaias têm recebido consultas de estrangeiros interessados em fixar residência no país onde a maconha é livre, mas esclareceu: não será permitido o “turismo da Cannabis” nos moldes da Holanda. E o potencial econômico da produção e comercialização começa a atrair as atenções de centenas de produtores agrícolas e investidores estrangeiros, segundo o jornal uruguaio El Observador.
Para o ex-presidente mexicano Vicente Fox, hoje um ativista e futuro investidor da maconha liberada, a legalização foi um “dia de festa”. “Parece-me que o Uruguai vai ganhar uma grande reputação. A medida é correta, vai evitar ser um território com violência e narcotráfico como no México. É uma decisão muito vanguardista.” Em maio, o ex-presidente se associou ao ex-executivo da Microsoft Jamen Shively, que registrou a primeira marca de maconha, a Diego Pellicer, em homenagem a um antepassado de Shively.
Até o momento, a dupla conseguiu reunir os 10 milhões de dólares necessários para investir em uma casa de distribuição de Cannabis no estado de Washington, um dos dois estados americanos onde é permitida a venda de maconha para uso recreativo. O outro é o Colorado. Em 18 estados, o uso medicinal é permitido. Presume-se que apenas nos EUA o negócio da maconha poderá movimentar 20 bilhões de dólares anuais.
Obviamente, a ideia do socialista Mujica, ao chamar para o Estado a produção e comercialização da maconha, não é transformar o vício em negócio. Ao contrário. O presidente do Uruguai conquistou fãs ao redor do mundo por sua posição anticonsumo, como ficou explícito no célebre discurso na Assembleia das Nações Unidas, em setembro. “A política, eterna mãe do acontecer humano, ficou limitada à economia e ao mercado”, criticou. Não seria com a maconha, uma planta, que Mujica iria agir diferente, em busca de divisas para sua nação.
A principal dúvida recai sobre o modelo estatal de produção e comercialização. “Acho excessivamente regulamentado, diante de uma planta tão ‘anárquica’. Pode incentivar a desobediência civil a alguns pontos, como a necessidade de cadastro ou o limite de cultivo. Mas ainda é cedo para julgar”, pondera Tófoli. “O plano está posto. Vamos vê-lo em funcionamento na sociedade uruguaia para podermos criticar, sugerir melhoras e, principalmente, pensar como proceder no Brasil.”
Em um subcontinente dividido entre a névoa do socialismo do século XXI e uma esquerda desenvolvimentista à moda dos anos 60 do século passado, Mujica mostra-se uma liderança sintonizada às demandas da modernidade. Logo ele, mais parecido a um personagem saído de algum romance latino-americano do século XIX.


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Maconha, porta de entrada (Artigo de Opinião)

Do O Dia – 08/02/2014

Rio - Os governos dos estados do Colorado e de Washington, nos Estados Unidos, que liberaram o consumo da maconha para fins recreativos e vão supervisionar o cultivo, a distribuição e até o marketing, vão dar uma alavancada na economia. Segundo pesquisa, a venda da maconha deve saltar de 1,4 bilhão de dólares para 2,34 bilhões. Mas, no futuro, quantos milhares de jovens serão afetados por essa decisão?
A partir de agora, esses jovens vão poder consumir, sem problemas, uma substância que, comprovadamente, afeta o cérebro humano, principalmente do adolescente, e reduz o desempenho escolar. E ainda pode aumentar o número de pessoas com problemas de memória e esquizofrenia.
Foi comprovado estatisticamente que em todos os países em que a maconha foi legalizada — como na Suécia, nos anos 70 —, houve um aumento de consumidores. A maconha pode não viciar tanto quanto outras drogas, como defendem alguns especialistas. Mas é a porta de entrada. Desafio qualquer ‘especialista’ a ir a uma cracolândia e perguntar ao usuário de crack se antes de se tornar um viciado ele não começou dando um ‘tapinha’ num cigarrinho de maconha. Cerca de 90% dos usuários de crack começam assim.
Em dezembro, o governo do Uruguai, além de liberar o consumo, tomou para si o trabalho dos traficantes e, também, vai produzir e vender maconha. A alegação do governo é a redução da criminalidade.
Não sei se é uma ingenuidade, um despreparo ou falta de conhecimento acreditar que uma lei que regula a produção e a venda — e libera o consumo — vai conseguir reduzir a criminalidade, ou acabar com o narcotráfico, já que 80% da renda do tráfico vem da cocaína e derivados.
A única certeza é que a liberação da maconha vai provocar um aumento considerável do número de viciados. O Uruguai pode estar assinando a certidão de óbito, no longo prazo, de milhares de jovens. A liberação da maconha pode prejudicar toda uma geração.

Rodrigo Bethlem é secretário municipal de Governo e presidente do Conselho Municipal Antidrogas

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A legalização é uma ação de paz (Artigo de opinião)

Da Le Monde Diplomatique Brasil – 01/01/2014


A legalização da maconha no Uruguai pode ser um marco na política sobre drogas na América Latina e no mundo. Mas antes de analisar os benefícios dessa mudança é necessário explicar como a maconha e outras drogas foram colocadas na ilegalidade no início do século XX. Com uma história milenar, a Cannabis só se tornou a “erva do diabo” depois de uma poderosa campanha de estigmatização recheada de preconceitos e interesses econômicos.
No âmbito global, o debate sobre a proibição das drogas começou em 1912, a partir da Convenção de Haia, com o foco na morfina, na heroína e na cocaína. Essa data é marcante para o início de uma política que trata as drogas como algo nocivo à sociedade e os mercadores dessas substâncias como “inimigos” das nações.
O governo norte-americano usou a Convenção de Haia para pressionar seu parlamento a endurecer a legislação restritiva ao comércio e ao uso de drogas. Isso resultou na aprovação do Harrison Narcotic Act, em 1914, que estabeleceu um duro combate ao ópio e seus derivados. Outro dado importante da Lei Harrison é a criação da figura criminal do traficante e do usuário de drogas. Para o primeiro, era imposta a pena de prisão e, para o segundo, o tratamento médico (compulsório, se necessário).
A proibição da maconha no território norte-americano se deu, curiosamente, após o fim da Lei Seca, que desautorizou as bebidas alcoólicas entre 1919 e 1933. O Marijuana Tax Act (Lei Tributária sobre a Maconha) de 1937 proibiu o cultivo, a distribuição e a comercialização da maconha nos Estados Unidos. Todo o aparato repressivo montado para reprimir o comércio de bebidas foi transferido para o combate à maconha e outras drogas ilícitas.
Curiosamente, o Brasil se antecipou radicalmente à fúria punitiva internacional, tendo ainda em 1830 a primeira lei proibindo o uso da maconha. A Câmara Municipal do Rio de Janeiro punia o “pito do pango”, denominação do fumo da Cannabisna época, que era visto como um hábito dos negros. Essa lei explicitava seu caráter racista ao descrever a pena para “escravos e outras pessoas” que utilizassem a erva. Os vendedores da planta eram punidos com multa de 20 mil réis e os usuários, com três dias na cadeia.
Serviu de base pretensamente científica para a proibição da maconha um discurso médico preconceituoso. O psiquiatra Rodrigues Dória (1857-1958) chegou ao ponto de apontar a maconha como uma espécie de vingança dos negros escravizados, que quereriam corromper os valores da cultura do “branco civilizado”. Atrelada a esse discurso, existia uma intolerância aos cultos africanos que utilizavam a maconha nos rituais sagrados. Após a Proclamação da República, uma mesma “delegacia” combatia a maconha e os candomblés: a Inspetoria de Entorpecentes, Tóxicos e Mistificações. Na ditadura Vargas (1937-1945) era comum que a polícia invadisse e destruísse terreiros que não haviam abolido o uso ritualístico da maconha.
No cenário internacional, o ano de 1961 foi marcante para a consolidação da política proibicionista, com a Convenção Única de Entorpecentes da ONU. Os mais de duzentos países signatários se comprometeram a adotar medidas mais restritivas em relação a certas drogas, punindo quem as produzisse, vendesse ou consumisse. O que já era um modelo repressivo ficou ainda mais duro quando o presidente Richard Nixon fez um pronunciamento em 1972, apontando os psicoativos como “os inimigos número 1 da América” e declarando “guerra às drogas”. Muitos apontam que essa cruzada de Nixon contra as drogas ilícitas na verdade tinha como alvo os hippies, o movimento negro e movimentos da contracultura, vistos como grandes opositores de seu governo conservador.

“Esse é o seu cérebro”
No bojo de tal política, o governo norte-americano desenvolveu uma poderosa campanha midiática para alertar e amedrontar a população sobre os perigos do uso de drogas ilícitas. Um famoso comercial de televisão exibia um ovo fritando e dizia: “Esse é o seu cérebro quando você usa drogas”.
Para “provar” que o uso de maconha era capaz de destruir os neurônios dos usuários, o governo apresentou uma pesquisa feita com macacos que tiveram dano cerebral após serem forçados a inalar a fumaça da Cannabis em testes de laboratório. Posteriormente essa pesquisa teve sua metodologia questionada, pois os macacos foram submetidos à fumaça da maconha através de uma máscara que despejava no corpo dos primatas uma dose equivalente a 63 baseados, durante cinco minutos por dia, em seis meses (nível absurdamente exagerado para o padrão de consumo). O que causou a morte de neurônios dos macacos não foi o uso frequente da maconha, mas a asfixia que ocorria durante o teste.
Outra estratégia que a política proibicionista adotou para aterrorizar a população sobre os efeitos da maconha foi propagandear que ela seria “porta de entrada” para outras drogas mais pesadas. O que é tratado pelo senso comum como fato científico não passa de uma questão cultural do uso de drogas, que pode mudar de acordo com o tempo, grupo social ou região. Não existe nenhum componente na maconha que desperte o interesse por drogas mais pesadas, como a cocaína ou a heroína. Muitos usuários de cocaína podem ter usado maconha anteriormente, mas entre as duas drogas não existe nenhum elo biológico. Na verdade, a maior parte dos usuários de maconha não consome outras drogas ilegais. Inclusive, há um estudo em São Paulo que aponta que a Cannabispode ser utilizada para reduzir danos ou até para afastar pessoas do uso de drogas mais pesadas, como o crack.
Na conta perversa do proibicionismo também podemos colocar o impedimento ao uso medicinal da maconha, apesar de suas propriedades terapêuticas serem muito bem documentadas e constarem no Pen-Ts’ao Ching, considerada a primeira farmacopeia conhecida do mundo, de 2723 a.C. Nessa publicação chinesa é descrito o efeito analgésico, anticonvulsivante e tranquilizante da Cannabis. Uma história famosa de uso medicinal da maconha vem do final do século XIX, na Inglaterra, onde a rainha Vitória seguia a receita do doutor R. Reynolds e usava essa erva para aliviar dores e cólicas. No Brasil, até o início do século XX, era possível encontrar nas farmácias as “Cigarrilhas Grimault para asma, catarros e insônia”.
Mesmo assim, a Convenção Única de Entorpecentes de 1961 relacionou a maconha em duas categorias: como planta sem nenhum valor medicinal e na de drogas especialmente perigosas. Nesta última a maconha ficou equiparada com a heroína.
Na era moderna, a maconha medicinal já se provou eficaz no alívio das náuseas causadas pelo tratamento quimioterápico, no estímulo do apetite tão necessário aos portadores do vírus HIV e na diminuição da pressão intraocular para pacientes com glaucoma.

Avanços na descriminalização
E foi no campo da maconha medicinal que o castelo da proibição começou a desmoronar nos Estados Unidos. Graças a um plebiscito realizado em 1996, a população do estado da Califórnia aprovou uma iniciativa que regulamentou o cultivo e a venda de maconha para fins medicinais. Desde então, os pacientes precisam passar por uma avaliação médica para receber uma receita com a quantidade de maconha que poderão comprar em estabelecimentos formais, conhecidos como dispensários. Lá, é possível adquirir a Cannabis em sua forma natural ou comprar bolos, biscoitos, leite, refrigerantes e outros produtos que proporcionam o barato e o alívio dos componentes psicoativos da erva.
Passados dezessete anos, outros dezenove estados dos EUA aprovaram leis que regulamentaram o mercado de maconha medicinal. Em 2012, Colorado e Washington avançaram para a legalização do uso recreativo, apesar de a legislação federal norte-americana ainda considerar qualquer forma de uso ilegal. Nesses dois estados, os primeiros empreendimentos já estão em funcionamento e economistas fazem estimativas de um negócio bilionário para os próximos anos. Todo esse dinheiro estará inserido em uma economia formal e tributada. O Colorado já definiu o imposto de 15% para a compra no atacado e outros 10% para a venda no varejo. O governo estadual vai destinar a arrecadação ao financiamento de escolas públicas, a programas de atendimento a dependentes químicos e à política de regulamentação.
Sobre o uso recreativo, é imperativo citar a experiência da Holanda, onde em 1975 o coffeeshop Bulldog foi inaugurado no Red Light District (bairro também conhecido pelas casas de prostituição). Naquele ano foi iniciada a venda legal de maconha no varejo, e a fama do país correu o mundo, despertando até mesmo a curiosidade de “caretas” que visitam a cidade de Amsterdã. Especificar que apenas a venda no varejo foi legalizada não é uma simples sutileza. O que muitos não sabem da “legalização” na Holanda é que apenas a venda para o consumidor final (com o limite de 5 gramas por cliente) é permitida. Quando o coffeeshop adquire a erva no atacado, o comerciante está realizando uma transação ilegal. Também é criminoso aquele que cultiva e vende a Cannabis em grande quantidade. Essa contradição nas regras do jogo é conhecida por lá como the backdoor problem (o problema da porta dos fundos). O proprietário do coffeeshop compra violando a lei e vende emitindo nota fiscal.
No avanço das políticas de legalização, o Uruguai será o próximo país a acabar com a proibição da maconha. Apesar de dizer que “não gosta de maconha”, o presidente José Mujica teve a consciência de propor a legalização com o objetivo de enfraquecer as finanças do narcotráfico, tirando do controle de grupos criminosos o monopólio de produção e venda de uma planta tão valiosa. Pelo projeto uruguaio, o Estado vai administrar o cultivo e oferecer a erva para a venda em estabelecimentos credenciados, onde cada residente poderá comprar até 40 gramas por mês. A venda para turistas não será permitida.
Além disso, cada usuário poderá cultivar até seis pés de Cannabis por residência ou participar de uma cooperativa de produtores sem fins lucrativos, tendo entre quinze e 45 sócios. Nesse último modelo, a maconha colhida deverá ser distribuída entre os associados e não poderá ser comercializada. Com a recente aprovação do Senado uruguaio na produção e comercialização da maconha, a primeira “colheita estatal” deve ocorrer no início do segundo semestre de 2014.

O atraso brasileiro
Infelizmente, o Brasil ainda segue com uma exagerada fidelidade a cartilha da “guerra às drogas”. Chegamos ao absurdo de violar o princípio constitucional da liberdade de expressão e reunião ao proibir a realização da Marcha da Maconha, acusada de ser um ato criminoso de apologia ao uso de drogas. Apenas em junho de 2011, o Supremo Tribunal Federal reconheceu e declarou a legalidade das manifestações públicas em defesa da legalização das drogas.
Na esfera legislativa, temos em debate propostas que endurecem ainda mais o modelo proibicionista, justificadas como necessárias para conter uma suposta “epidemia do uso de crack”, que já foi desmentida por vários especialistas. O Projeto de Lei n. 7.663/2010 aumenta a pena mínima para acusados de tráfico de cinco para oito anos e fortalece a política de internações compulsórias para usuários de drogas. Essa mesma proposta ainda contava com um macabro “cadastro nacional de usuários de drogas”, no pior estilo dos instrumentos de controle social da Alemanha nazista. Depois de grande mobilização da sociedade civil, esse artigo foi suprimido do projeto.
A legislação brasileira tem como ponto positivo uma brecha que permite a instituições de pesquisa a possibilidade de cultivar maconha com finalidade científica. Mas a burocracia imposta pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) é tão grande que nenhuma instituição ou universidade detém essa autorização para pesquisar essa planta e todas as suas múltiplas utilizações terapêuticas, apontadas pelas medicinas antiga e moderna.
Analisando a história, é possível perceber que a proibição da maconha é sustentada por argumentos racistas, utilizados para a perseguição cultural de minorias, além de pesquisas de métodos questionáveis ou já desqualificados. A legalização da maconha é necessária e urgente para reparar todos esses equívocos e pela constatação de fracasso global do modelo proibicionista, admitido até em relatórios da ONU. Os mais de sessenta anos de proibição não conseguiram em nenhum momento eliminar o mercado ilegal de venda de maconha ou de outras drogas ilícitas. Pelo contrário: os dados desse período indicam uma expansão do consumo entre diferentes classes sociais, regiões e o surgimento de novas drogas.
Estima-se que 4% da população brasileira seja usuária de maconha. A maioria absoluta desses consumidores (com a exceção dos cultivadores caseiros) compra maconha sem nenhum controle de qualidade no mercado ilegal. Nesse ambiente, o usuário acaba tendo contato com outras drogas também ilegais, no que se pode chamar de verdadeira porta de entrada para outras drogas. Se a “porta de entrada” existe, é em razão da proibição que coloca substâncias tão diferentes, como a maconha e a cocaína, no mesmo pacote.
A proibição não funciona nem para controlar o uso, e hoje podemos dizer que, na prática, a venda de maconha está liberada. Afinal, qualquer pessoa, independentemente da idade, pode comprar a erva na favela ou no asfalto sem muita dificuldade. Estabelecer a legalização e regulamentação da maconha é uma medida para criar um controle sobre a produção, compra e venda dessa droga, e um ambiente onde mercadores não precisem portar armas ou controlar territórios para garantir a venda de maconha. Usuários terão a oportunidade de adquirir ou cultivar um produto que passe por um controle de qualidade, fundamental para quem utiliza um psicoativo. Cientistas e médicos terão mais liberdade para desenvolver novas terapias e receitar medicamentos à base de maconha.
A proibição e o combate às drogas já resultaram em um incontável número de conflitos entre criminosos e forças policiais. Também é incalculável a quantidade de mortos nessa guerra. Cerca de 14 mil brasileiras e mais de 117 mil brasileiros estão presos por vender ou transportar uma substância ilícita, muitas vezes enfrentando penas superiores ao do delito de estupro. Em todos os casos, o alvo da repressão é a ponta mais frágil desse mercado: os jovens negros e pobres das favelas, camponeses bolivianos ou imigrantes indesejáveis nos países desenvolvidos. A “guerra às drogas” é uma guerra aos pobres disfarçada, que só cumpre o papel de controle social e criminalização dos trabalhadores. A legalização é uma ação de paz.


Renato Cinco - Vereador do Rio de Janeiro, pelo PSOL. Sociólogo. Militante ecossocialista, libertário e do Movimento pela Legalização da Maconha.

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