Ataques
de ‘justiceiros’ viram rotina no Rio (Reportagem)
Do O Dia – 10/02/2014
Rio - A onda de ataques a
supostos criminosos e moradores de rua em diversos bairros do Rio — boa parte
deles, menores de idade — por parte de grupos que se autointitulam
‘justiceiros’ vem se tornando rotina. A sede de ‘fazer justiça com as próprias
mãos’ preocupa autoridades, amplia a polêmica sobre o assunto nas redes sociais
e causa repercussão no exterior.
Um caso no Aterro do Flamengo
sexta-feira levantou a discussão: um adolescente de 15 anos foi torturado e
preso nu a um poste, com tranca de bicicleta no pescoço. No início da noite de
ontem, em depoimento na 9ª DP (Catete), o menor, que tem três passagens pela
polícia, revelou ter sido agredido por cerca de 30 homens, um deles armado com
pistola.
No início da tarde de ontem, em
Copacabana, um adolescente de 17 anos, que tentou roubar cordão de uma mulher,
foi perseguido e detido por comerciantes. Segundo o jovem, ele teria sido
agredido e teve os pés amarrados com barbantes. No dia 27, um homem roubou o
celular de uma mulher na saída do Túnel Martin de Sá, na Rua do Riachuelo, no
Centro, em frente a uma cabine da PM que, segundo testemunhas, estava vazia.
“A vítima gritou por socorro e,
em poucos minutos, pelo menos 20 pessoas cercaram o acusado, o imobilizaram e o
agrediram. Em seguida, dois PMs chegaram e o conduziram algemado para a 5ª DP
(Mem de Sá)”, detalhou o presidente da Associação de Moradores da região,
Moisés Muniz, que filmou e fotografou a cena.
Na filmagem, postada no Youtube,
é possível perceber a ira dos moradores. “Deixa ele aqui, doutor”, grita um
homem, em meio a xingamentos, enquanto os policiais conduzem o suspeito,
assustado, à viatura. “Ele já é conhecido da área, integrante da Gangue da
Bicicleta. Sabe como é: não tinha polícia na área, então o povo teve que agir”,
justificou Moisés. A tese, aliás, é compartilhada por defensores dos
‘justiceiros’ nas redes sociais.
No
Centro, ação é muito comum entre populares
O delegado da 5ª DP (Mem de Sá),
Alcides Pereira, disse ‘ser comum’ suspeitos serem detidos por outras pessoas
no Centro e depois conduzidos pela PM à delegacia. “A recomendação é que a
polícia seja sempre acionada, obviamente, sem o suspeito ser agredido”.
Assim como sociólogos, o padre
Renato Chiera, que acolhe menores infratores, condena os ‘justiceiros’. “Querem
combater de maneira covarde as consequências, e não as causas do caos social”,
opinou. Em nota, a PM informou que, no caso do homem preso na Rua do Riachuelo,
a cabine da corporação estava vazia, porque policiais foram “acionados para
ocorrências”.
Menor
conta que foi agredido a chutes e teve os pés amarrados
O menor detido por comerciantes
ontem contou, na 13ª DP (Copacabana), que antes de a PM chegar, foi agredido a
chutes e, em seguida, teve os pés amarrados. Segundo testemunhas, ele foi pego
na Rua Leopoldo Miguez. “Me chutaram e amarraram meus pés com barbantes, mas
consegui me soltar. A sorte é que a polícia chegou a tempo”, contou o
adolescente, que responderá por furto.
Segundo a polícia, ele estaria
com outro jovem, que acabou fugindo com o cordão roubado. “Deram um ‘sacode’
nele antes de a PM chegar. Todo dia tem esse tipo de ação de criminosos aqui.
Ninguém aguenta mais isso”, disse um segurança que trabalha na região e
preferiu não se identificar.
Na madrugada de sábado, mais um
caso de violência semelhante: dois rapazes — um deles menor de idade — foram
espancados na Penha, depois de terem roubado celulares de outros dois jovens na
Rua Quito. Luiz Felipe Rodrigues da Silva, 23, e seu comparsa adolescente
precisaram ser atendidos no Hospital Souza Aguiar, antes de ser conduzidos à
22ª DP (Penha).
O instinto de vingança de parte
da população foi destacado na terça-feira pelo tabloide britânico 'Daily Mail',
que publicou a foto do adolescente agredido no Flamengo com o título:
“Vigilantes brasileiros pegam 'ladrão'”. Na reportagem, são citadas as
discussões contra e a favor dos ‘justiceiros’ na internet.
Artista
diz sofrer ameaças por ajudar jovem
A artista plástica Yvonne Bezerra
de Melo disse ontem, ao entrar na 9ª DP (Catete) para depor sobre o caso do
menor amarrado ao poste, que está sendo ameaçada de morte. “Estou sendo xingada
porque ajudei uma pessoa que eu nem conhecia. Estou sendo acusada de estar
defendendo bandidos. Estou de saco cheio dessa sociedade. P* que pariu”.
Mas, segundo a delegada-titular
da 9ª DP, Monique Vidal, Yvonne não relatou as ameaças em depoimento. Na
delegacia, disse apenas que foi chamada por um vizinho para socorrer o
adolescente e afirmou que não procurou a polícia porque o Corpo de Bombeiros
logo o levou para o Hospital Souza Aguiar, no Centro.
Segundo a policial, o depoimento
não foi esclarecedor. “Ela disse que PMs também estavam no local em que o rapaz
foi achado”, contou Monique Vidal. Ela investiga a ação de um grupo de jovens
de classe média, que se denomina Os Justiceiros, que seriam os agressores. A
delegada já pediu imagens de câmeras da região.
Monique investiga também se os 14
jovens detidos pela PM no Aterro do Flamengo na segunda-feira fazem parte da
gangue. Um deles, Lucas Felício, admitiu na 9ª DP que tem agido em grupo na
caça a supostos infratores, mas disse que não está envolvido na agressão ao
menor.
Ontem, ele retirou do ar sua
página no Facebook . “Porrada na vagabundagem mesmo”, comentava, entre outras
declarações.
Grupo
estava em academia e chegou em motos
Após ser torturado e amarrado a
um poste pelo pescoço com uma trava de bicicleta a um poste no Flamengo, o
adolescente E., de 15 anos, buscou refúgio num ambiente que se tornou familiar
para ele: um abrigo municipal. Filho de um traficante morto quando ele era um
bebê e proibido por quadrilha de milicianos de voltar à casa da mãe por furtar
uma furadeira, em Campo Grande, na Zona Oeste, ele virou figurinha carimbada no
abrigo. Só nos últimos três meses, procurou o local em busca de uma cama para
dormir em cinco ocasiões.
A última foi no sábado. E., mesmo
depois de ter sido torturado, não fez alarde. Só foi reconhecido ontem por uma
diretora. Então, repetiu aos funcionários do abrigo a mesma versão que contaria
ontem à noite na 9ª DP (Catete). Ele disse que estava com três amigos por volta
das 2h30, a caminho de Copacabana, quando foi abordado por 30 homens. Eles
estavam com as motos junto ao meio-fio e faziam musculação numa academia na
Enseada de Botafogo.
Ele e outro amigo não fugiram
porque foram ameaçados por uma pistola 9 milímetros — uma ‘nove nariguda’, como
descreveu na delegacia. Em meio às agressões, o amigo dele escapou. E, antes de
ser preso, disse ter ouvido: “Você vai pagar pelos que fugiram!”
Nenhum
dos acusados foi identificado pela vítima
Nenhum dos 14 jovens detidos na
segunda-feira, sob a suspeita de integrar um grupo de ‘justiceiros’, foi
identificado pelo adolescente em depoimento. Eles foram pegos enquanto dois
rapazes pediam socorro. Sem antecedentes criminais, eles serão investigados por
formação de quadrilha e por corrupção de menores.
Enquanto isso, a delegada Monique
Vidal busca vítimas do adolescente agredido, que é menor infrator e tem
passagem pela polícia por roubo, furto e lesão corporal. “Investigar roubo a
pedestre é complicado, porque é uma população flutuante. Se houvesse o
policiamento ostensivo facilitaria nossa vida”, disse.
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SBT Brasil (Comentário)
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Ordem ou barbárie? (Artigo de Opinião)Da Folha – 11/02/2014
O fenômeno da violência é tão
antigo quanto o ser humano. Desde sua criação (ou surgimento, dependendo do
ponto de vista), o homem sempre esteve dividido entre razão e instinto, paz e
guerra, bem e mal.
Há quem tente explicar a
violência, a opção pela criminalidade, como consequência da pobreza, da falta
de oportunidades: o homem fruto de seu meio. Sem poder fazer as próprias
escolhas, destituído de livre-arbítrio, o indivíduo seria condenado por sua
origem humilde à condição de bandido. Mas acaso a virtude é monopólio de ricos
e remediados? Creio que não.
Na propaganda institucional, a
pobreza no Brasil diminuiu, o poder de compra está em alta, o desemprego
praticamente desapareceu... Mas, se a violência tem relação direta com a
pobreza, como explicar que a criminalidade tenha crescido em igual ou maior
proporção que a renda do brasileiro? Criminalidade e pobreza não andam
necessariamente de mãos dadas.
Na semana passada, a violência
(ou a falta de segurança) voltou ao centro dos debates. O flagrante de um jovem
criminoso nu, preso a um poste por um grupo de justiceiros deu início a um
turbilhão de comentários polêmicos. Em meu espaço de opinião no jornal
"SBT Brasil", afirmei compreender (e não aceitar, que fique bem
claro!) a atitude desesperada dos justiceiros do Rio.
Embora não respalde a violência,
a legislação brasileira autoriza qualquer cidadão a prender outro em flagrante
delito. Trata-se do artigo 301 do Código de Processo Penal. Além disso, o
Direito ratifica a legítima defesa no artigo 23 do Código Penal.
Não é de hoje que o cidadão se
sente desassistido pelo Estado e vulnerável à ação de bandidos. Sobra dinheiro
para Cuba, para a Copa, mas faltam recursos para a saúde, a educação e,
principalmente, para a segurança. Nos últimos anos, disparou o número de
homicídios, roubos, sequestros, estupros... Estamos entre os 20 países mais
violentos do planeta. E, apesar das estatísticas, em matéria de ações de
segurança pública, estamos praticamente inertes e, pior: na contramão do bom
senso!
Depois de desarmar os cidadãos
(contrariando o plebiscito do desarmamento) e deixá-los à mercê dos criminosos,
a nova estratégia do governo, por meio do Conselho de Defesa dos Direitos da
Pessoa Humana, é neutralizar a polícia, abolindo os autos de resistência.
Na prática, o policial terá que
responder criminalmente por toda morte ocorrida em confronto com bandidos. Em
outras palavras, é desestimular qualquer reação contra o crime. Ou será que a
polícia ousará enfrentar o poder de fogo do PCC (Primeiro Comando da Capital)
ou do CV (Comando Vermelho) munida apenas de apitos e cassetetes?
Outra aliada da violência nossa
de cada dia é a legislação penal: filha do "coitadismo" e mãe
permissiva para toda sorte de criminosos. Presos em flagrante ou criminosos
confessos saem da delegacia pela porta da frente e respondem em liberdade até a
última instância.
No Brasil de valores
esquizofrênicos, pode-se matar um cidadão e sair impune. Mas a lei não perdoa
quem destrói um ninho de papagaio. É cadeia na certa!
O ECA (Estatuto da Criança e do
Adolescente), o Estatuto da Impunidade, está sempre à serviço do menor
infrator, que também encontra guarida nas asas dos direitos humanos e suas
legiões de ONGs piedosas. No Brasil às avessas, o bandido é sempre vítima da
sociedade. E nós não passamos de cruéis algozes desses infelizes.
Quando falta sensatez ao Estado é
que ganham força outros paradoxos. Como jovens acuados pela violência que tomam
para si o papel da polícia e o dever da Justiça. Um péssimo sinal de
descontrole social. É na ausência de ordem que a barbárie se torna lei.
RACHEL
SHEHERAZADE, 40, jornalista pela Universidade Federal da Paraíba, é âncora do
telejornal "SBT Brasil"
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A subsombra desumana de Raquel
Sheherazade (Artigo de opinião)
Da Carta Capital – 06/02/2014
"A mais triste nação, na época mais podre, compõe-se de possíveis grupos de linchadores".
"A mais triste nação, na época mais podre, compõe-se de possíveis grupos de linchadores".
Esta frase é, na verdade, um
verso de Caetano Veloso, que, no início na década de 1990, indignado com uma
onda de linchamentos no Brasil ainda subdesenvolvido, escreveu a canção "O
cu do mundo". Recorrendo ao fato linguístico de que palavra "cu"
poder ser classificada como adjetivo ou substantivo comum, Veloso canta que o
Brasil , "cu do mundo" (periferia das potências e dos centros de
decisão da política internacional), seria, pela frequência com que linchamentos
acontecem por esse sítio, um "cu" (no pior sentido desse
"adjetivo esdrúxulo": sujo, fedido, péssimo, insuportável).
O linchamento é - imagino que
todos saibam disso - a violência dura (espancamentos e assassinatos) perpetrada
por um grupo de pessoas como punição contra um indivíduo acusado de ter
praticado algum delito, mas sem o devido processo judicial e em detrimento dos
direitos fundamentais de toda pessoa humana garantidos pelas leis.
Há uma controvérsia sobre a
origem da palavra "linchamento". Alguns autores a atribuem ao coronel
Charles Lynch, que fazia "justiça com as próprias mãos" durante a
guerra de independência dos Estados Unidos. Outros, porém, defendem que a
palavra é derivada do fato de o capitão William Lynch, do estado da Virgínia,
ter mantido, por volta de 1780, um grupo de pessoas que, à margem da lei, punia
com morte violenta os inimigos.
Em ambos os casos, a violência
praticada pelo grupo contra os delinquentes reais ou supostos estava eivada de
ódio racial contra os índios e os negros. Aliás, esses grupos foram o embrião
da Ku Klux Klan.
Duas décadas depois daquele
desabafo em forma de canção feito por Caetano Veloso, a "subsombra
desumana dos linchadores" a que ele se refere volta a escurecer o céu de
nosso frágil estado democrático de direito.
Em Goiânia, moradores de rua são
exterminados com requintes crueldade por "justiceiros" anônimos
"cansados" dos pequenos delitos ou simplesmente da feiura que os
sem-teto trazem à paisagem urbana (anônimos porque não há, por parte das
polícias locais, boa vontade de empreender uma investigação rigorosa e eficaz
que os identifique e possibilite que sejam punidos na forma da lei).
Na capital paulista, além dos
moradores de rua, principalmente aqueles entregues ao abuso do crack, são
vítimas de "justiceiros" também homossexuais e travestis, abatidos
por espancamentos e/ou assassinatos cada vez mais violentos.
No Rio de Janeiro, capital,
homeless pardos, malandros pretos, ladrões mulatos e outros cidadãos quase pretos
considerados "suspeitos" por causa da cor da pele e/ou do jeito que
se vestem que costumam frequentar o Aterro do Flamengo foram alvos de uma
reação violenta de "justiceiros" locais, que, para mostrar o quanto
desdenham das garantias jurídicas e o quanto se consideram acima das leis,
ataram a um poste, com uma trava de bicicleta, um dos malandros pretos
espancados (um adolescente despido de sua roupa e dignidade).
A reação clara e inequivocamente
criminosa dos "justiceiros" e linchadores cariocas à presença da
população marginal no parque que consideram seu ganhou, de imediato, o aval e o
estímulo (sim, estímulo!) da jornalista Raquel Sheherazade, âncora do Jornal do
SBT, emissora que ocupa o segundo lugar em audiência.
Sheherazade não só defendeu
abertamente o linchamento do menor como afirmou que as pessoas "de
bem" não têm outra resposta para o "estado de violência" que não
a "justiça com as próprias mãos" (claro que ela estava se referindo
apenas aos delitos praticados pelos pobres e negros, já que defendeu e
justificou a delinquência do astro pop Justin Bieber), desprezando o - e
debochando do - papel das polícias, do Ministério Público, do poder judiciário
e dos defensores dos Direitos Humanos na mediação dos conflitos em sociedade.
Acontece que, sendo o linchamento
ou justiça por conta própria crimes previstos no nosso código penal, a apologia
e o estímulo a estes crimes também constituem um crime! E aí?
Embora o nome de Raquel
Sheherazade circulasse por textos de ativistas indignados com suas opiniões tão
medíocres quanto reacionárias, eu, até então, não tinha dado muita atenção a
ela; nem mesmo quando me citou de maneira negativa em sua fervorosa defesa da
permanência do deputado pastor Marco Feliciano na presidência da CDHM da
Câmara, apesar das acusações de racismo e homofobia que pesavam sobre ele.
Para mim, até então, Sheherazade
não passava de uma mulher cafona, fundamentalista religiosa, limitada
intelectualmente e de repertório cultural estreito - uma espécie de Afanásio
Jazadji de tailleur - que caiu nas graças de Sílvio Santos. Não tinha,
portanto, motivos para lhe dar atenção. Agora, porém, depois de sua apologia ao
linchamento e da boa recepção que esta teve nas redes sociais, não posso mais
ignorá-la: preciso enfrentá-la!
O elogio de Sheherazade e seus
simpatizantes aos "justiceiros" do Aterro do Flamengo materializa a
velha tendência de se buscar, no que diz respeito à segurança pública,
"soluções biográficas para contradições sistêmicas", como diz o sociólogo
alemão Ulrich Beck. Isso quer dizer que a jornalista e sua gente pertencem à
tradição que trata a delinquência fruto das históricas desigualdade e injustiça
sociais com métodos de tortura ou execução sumária dos delinquentes, ignorando
o sistema que os produzem.
Se nos encontramos num
"estado de violência", como ela diz, é também porque seu discurso e o
de boa parte da mídia associam pobreza e negritude à criminalidade,
desumanizando as populações das periferias e as expulsando da comunidade moral.
Em sua visão de mundo estreita e
sustentada em preconceitos, Sheherazade e os que lhe aplaudem, consideram a
defesa dos Direitos Humanos dos pobres e dos marginais um estorvo para a
segurança do "cidadão de bem". Ora, isso não passa de estupidez!
Esses direitos, em sua formulação
consagrada internacionalmente, são de todos e todas e não apenas de Raquel
Sheherazade e sua turma. Os direitos à vida e à integridade física, bem como o
direito à defesa num julgamento justo, não podem ser entendidos como privilégios
de gente branca que mora em bairros privilegiados e tem renda para o consumismo
- que é como Sheherazade os entendem. Esses direitos são também daquele
adolescente espancado e atado a um poste por uma trava de bicicleta! Como a
jornalista cafona se sentiria se um grupo de pessoas, fazendo "justiça com
as próprias mãos", decide linchá-la por sua apologia ao linchamento?
Sheherazade deveria refletir sobre essa pergunta antes de estimular a barbárie
mais uma vez.
Desacreditar o Estado Democrático
de Direito em cadeia nacional para defender linchamento de um adolescente
negro, pobre e supostamente delinquente é apodrecer nossa época; é fazer, do
Brasil, o cu do mundo!
Jean
Wyllys é jornalista e linguista, deputado federal pelo PSOL-RJ e integrante da
frente parlamentar em defesa dos direitos LGBT.
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A
volta do Pelourinho (Artigo de opinião)
Da Folha – 11/02/2014
A foto de um adolescente negro,
deixado nu, sangrando após golpes de capacete e amarrado a um poste por uma
trava de bicicleta correu o mundo. Ressuscitou-se o Pelourinho 125 anos após
"o fim da escravidão", para regozijo de quem sempre está pronto para
empinar o chicote e fazer justiça com as próprias mãos. Como se essa violência
não gerasse mais violência e insegurança, em nome da segurança. Querem
substituir o Estado pela barbárie.
Diante da gravidade do fato, em
vez de negar a barbárie, a jornalista Rachel Sheherazade, no jornal do SBT, em
horário nobre, não só achou justificável a ação dos 30 justiceiros, como
estimulou a atitude do que ela chamou de "vingadores". Ou seja,
milícias, gangues e bandos que operam à margem da lei.
O que é isso senão apologia ao
crime, à tortura, ao linchamento, ao justiçamento? Em seu editorial, em busca
de audiência e navegando no senso comum e no desespero da população com a
violência, a âncora conseguiu violar a Constituição, o ECA (Estatuto da Criança
e do Adolescente), todas as convenções de defesa dos direitos humanos, o código
de ética dos jornalistas brasileiros, o Código Penal e o Código Brasileiro de
Telecomunicações e ainda debochou: quem se apiedou do "marginalzinho"
que adote um "bandido".
Por isso representamos a
jornalista e o SBT junto ao Ministério Público Federal e Estadual (SP). O SBT
afirmou que não se responsabiliza pelas declarações de seus âncoras, já de olho
nas consequências legais. A jornalista afirmou que as críticas representavam
censura. Refugiam-se covardemente na liberdade de imprensa e de opinião, mas
sabem que as leis não amparam apologia ao crime, à tortura e ao linchamento.
Por outro lado, o SBT sabe que
rádio e TV operam por meio de outorgas concedidas pelo Ministério das
Comunicações e aval do Congresso Nacional. Não é mera propriedade privada, como
querem que acreditemos. A emissora tem sim responsabilidade sobre o que
apresenta e o Ministério das Comunicações e o Congresso Nacional não podem se
omitir em exercer sua prerrogativa de fiscalizar as concessionárias.
Na Alemanha de Hitler, muito
antes da guerra, os nazistas formaram grupos paramilitares, milícias
aterrorizadoras (os Freikorps) que massacravam "inimigos" (judeus,
comunistas, minorias), detonaram o monopólio da força pelo Estado e levaram o
ditador ao poder. E deu no que deu. Aqui, o inimigo dos Freikorps do bairro do
Flamengo são os jovens, negros e pobres, infratores ou não. Negam o Estado
democrático de Direito e pretendem, com a criação de força paralela, com
tortura e eliminação física, enfrentar a delinquência esquecendo o sistema que
a gera. As históricas desigualdades e injustiças não podem ser resolvidas pela
barbárie, mas pelo acolhimento do Estado.
Defendemos a total liberdade de
opinião. Mas, é um retrocesso entender que incitação ao crime está resguardada
pela liberdade de expressão. O compromisso constitucional brasileiro é com a
construção de uma sociedade fraterna, justa e solidária. Nosso país não precisa
de milícias ou grupos de extermínio. O que precisamos é de mais educação,
política social, segurança pública, distribuição de renda e igualdade de
direitos. Única maneira de se conseguir a paz.
IVAN
VALENTE, 67, é deputado federal por São Paulo e líder da bancada do PSOL na
Câmara
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