segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Debates – Os rolezinhos e as manifestações populares

Caso de Polícia (Artigo de opinião)

Da Folha – 05/02/2014

Apenas em janeiro deste ano, 30 ônibus das empresas concessionárias, três das permissionárias e mais nove veículos do sistema intermunicipal foram incendiados na região metropolitana de São Paulo.
Nenhum desses incêndios teve como motivação o valor da tarifa ou a qualidade do serviço. Pela irresponsabilidade e inconsequência, bem como pelos resultados graves do ato praticado, o incendiário deve ser recolhido e encaminhado para tratamento mental ou preso e condenado por periclitação à vida, tentativa de homicídio e dilapidação do patrimônio alheio, entre outros crimes previstos no Código Penal.
Quer nos parecer que o incendiário está muito mais para criminoso do que para doente mental.
O mais preocupante é que colocar fogo em ônibus se tornou um recurso empregado para conferir visibilidade ao indivíduo que pratica o ato de selvageria e banditismo. Em quase todos os incêndios provocados, o ônibus encontrava-se em plena operação, com tripulação e passageiros a bordo. Em alguns casos, os incendiários nem sequer deram tempo aos usuários para que descessem do veículo e se protegessem.
Parece que, de uma hora para outra, a população teria se dado conta de que manifestações, lutas, lemas e bandeiras não sensibilizariam mais os formadores de opinião se não aparecessem nos telejornais e nas primeiras páginas dos jornais. Quando noticia tais incidentes, a imprensa legitima a atuação dessas falsas lideranças.
Ao longo dos últimos cinco anos, cresceu o número de veículos incendiados e o prejuízo das empresas concessionárias do serviço de transporte por ônibus em São Paulo: de 16 veículos incendiados e um prejuízo de R$ 8 milhões em 2009, passou para 53 ônibus incendiados e prejuízo superior a R$ 26 milhões em 2013. No total, as empresas operadoras tiveram perda de 189 ônibus e R$ 94 milhões. Os veículos incendiados, quase todos com meia vida útil, foram substituídos por novos, aumentando o custo de produção dos serviços.
Os motoristas e cobradores que atuam nas regiões onde os ônibus são mais frequentemente incendiados começam a dar sinais de que não querem mais trabalhar em determinados horários ou quando há indício de manifestação. O receio de colocar suas próprias vidas em risco tem criado um ambiente de apreensão e de medo. No final do ano passado, um motorista que decidiu ajudar uma cadeirante a sair de um ônibus em chamas teve o braço queimado e ficou com sequelas para o resto da vida.
Mas, o prejuízo maior é a falta de transporte público para a população que depende dele. A retirada de um ou mais ônibus incendiados da operação de uma determinada linha pode provocar uma significativa redução do número de paradas e redução impactante da frota.
Por todas essas razões, a questão já ganhou uma dimensão que exige urgentes providências das autoridades constituídas, em especial daquelas ligadas à área da segurança pública. A demora em capturar e responsabilizar os incendiários tem contribuído para o crescimento vertiginoso desse crime. Atear fogo em ônibus é caso de polícia.

FRANCISCO CHRISTOVAM, 61, é presidente do SP-Urbanuss (Sindicato das Empresas de Transporte Coletivo Urbano de Passageiros de São Paulo). Presidiu a SPTrans (empresa que gere o sistema de transporte coletivo da cidade) de 1993 a 1999


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Rolezinhos na sociedade do espetáculo (Artigo de opinião)

Do Estadão – 06/02/2014

A ocorrência dos rolezinhos despertou minha curiosidade pelo assunto, principalmente em razão de palestra a que assisti no Brasil há alguns anos, ministrada por Gilles Lipovetsky, um filósofo francês que analisa a realidade sócio-histórica e, dentro dela, fenômenos como o consumo, a moda e o luxo. São temas também da seara de economistas, como eu, e pelo que li nos jornais os rolezeiros são muito focados na moda e no consumo, o que para eles constitui um luxo.
Para Lipotvesky, cada um tem a sua ideia do que seja luxo, muitas vezes compartilhada pela sua comunidade. Na palestra, ao falar do luxo nessa perspectiva, que não depende necessariamente da renda, ele disse que para brasileiros isso não deveria ser novidade. E mencionou os nossos índios, que se enfeitam luxuosamente para suas celebrações, e também todo o luxo ostentado pelas escolas de samba.
Na realidade sócio-histórica atual, Lipovetsky identificou o que chamou de hipermodernismo, objeto de seu livro Os Tempos Hipermodernos, de 2004. Pondero não ser possível fazer justiça ao seu abrangente significado recorrendo a uma frase ou outra, mas não tenho alternativa. Num trecho em que explica o conceito, afirma que (...) "no cerne do novo arranjo do regime do tempo social, temos: (1) a passagem do capitalismo de produção para uma economia de consumo e de comunicação de massa; e (2) a substituição de uma sociedade rigorístico-disciplinar por uma 'sociedade-moda' completamente reestruturada pelas técnicas do efêmero, da renovação e da sedução permanentes".
"Nasce toda uma cultura hedonista e psicologista que incita à satisfação imediata das necessidades, estimula a urgência dos prazeres, enaltece o florescimento pessoal, coloca no pedestal o paraíso do bem-estar, do conforto e do lazer. Consumir sem esperar; (...) divertir-se; não renunciar a nada (...)."
São termos sofisticados, mas que colocam os rolezinhos como fenômeno hipermoderno, apoiado também no forte avanço das tecnologias de informação e comunicação. É só traduzir esse "filosofês": os rolezeiros apreciam o consumo e andam na moda, valorizam a cultura do prazer, até mesmo na urgência de beijar as "minas" que também se dispõem a fazê-lo, querem ser admirados por suas aparências e seus feitos, e por aí afora. Para o florescimento pessoal fotos nas reportagens e nas capas de revistas são a glória.
Encontrei outra obra pertinente ao assunto, datada de 1967, que permanece atual. Intitulada A Sociedade do Espetáculo, foi escrita Guy Debord, outro filósofo francês, um marxista crítico da velha guarda do ramo. Cada parágrafo exige reflexão do leitor. Teve várias traduções do francês e uma em inglês, que consultei, criticou outras na sua introdução.
Dada a complexidade do texto, recorri a uma resenha dele feita pelo jornalista John Harris, do jornal britânico The Guardian, de 30/6/2012. Harris também adverte ser temerário descrever o livro por poucas frases, mas selecionou algumas, e eu ainda escolhi estas entre elas: "Em sociedades onde predominam as modernas condições de produção, toda a vida se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido se transformou numa representação". Depois de refundir a ideia de ser na de ter, "(...) a atual fase de total ocupação da vida social pelos resultados acumulados da economia (...)" produziu um "(...) generalizado deslize do ter para o aparecer, do qual todo o efetivo ter deve extrair seu imediato prestígio e sua função final".
Nesse contexto, imagem e realidade se confundem, muitas vezes com predomínio da primeira, de mais fácil difusão e percepção. E frequentemente de forma oportunista, como no caso da propaganda de bens e serviços, ou mesmo de políticos.
Mas onde está o marxismo de Debord? Está no fato de que procura entender como evolui e se adapta o capitalismo, contrariando companheiros que, assentados em clichês antigos, ficam a esperar por uma crise definitiva desse sistema. Que nunca chega, como o esperado personagem Godot da conhecida peça teatral. Uma razão é que o consumo exacerbado pelo espetáculo impulsiona a economia e acaba sendo uma forma de alienação do proletariado de sua efetiva condição social, um tema recorrente da análise marxista.
Em retrospecto, embora de diferentes vertentes, as análises de Lipovetsky e Debord se integram, pois ambos enfatizam o consumo exacerbado. E a moda e o luxo do primeiro autor levam a espetáculos pessoais na visão do segundo. Como conceito, entretanto, a sociedade do espetáculo firmou-se mais do que a hipermodernidade. Além de mais recente, este último adotou como nome uma perspectiva temporal, enquanto o título de sociedade do espetáculo enfatiza a natureza do que se passa. Evidência disso é que Mário Vargas Llosa, num livro publicado em 2013, optou por chamá-lo de a civilização do espetáculo, ainda que se referindo aos dois autores.
Pensando em como lidar com os rolezinhos, pouco tenho a dizer. Talvez caiam de moda ou de conveniência para seus praticantes, inclusive pelo fim das férias escolares. De qualquer forma, o diálogo entre as partes envolvidas é indispensável. Ele vem ocorrendo, mas do lado dos shoppings vejo-o limitado a seus donos ou executivos. Falta a representação dos comerciários que trabalham nos shoppings recebendo parte de seus ganhos na forma de comissões sobre vendas e, assim, ficando no prejuízo com os rolezinhos ou com a simples ameaça deles.
E se houve quem, precipitadamente, tenha visto no fenômeno um sintoma de crise do capitalismo, com gente do proletariado se arregimentando para enfrentá-lo, vale lembrar uma contradição interna a essa classe e frequentemente ignorada por marxanalistas. Essa dos interesses divergentes de rolezeiros e comerciários, entre muitas outras.

*Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e HARVARD) e consultor econômico e de ensino superior.

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,rolezinhos-na-sociedade-do-espetaculo,1127237,0.htm

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Quem mexeu na minha praça de alimentação? (Artigo de opinião)

Da Carta Capital – 16/01/2014

Especialistas trarão mil e uma teorias sobre o fenômeno surgido como novidade no início do ano (as chacinas na periferia da maior cidade do interior paulista ou nos presídios do Nordeste não são fenômenos novos: são déjà vu, ocorrem dia sim, dia não, e, exceto pelas imagens da barbárie, não chocam nem comovem o grosso da opinião púbica).
O rolezinho da periferia, por sua vez, não só choca como divide: o presídio e o beco estão longe, mas a praça de alimentação é quase um quintal vilipendiado.  Assim, o fenômeno chama a atenção menos pelo que significa e mais pelo que provoca: de um lado, aplausos de quem vê na mobilização um novo verniz para a luta de classes; de outro, os relinchos dos apavorados de plantão que agora se veem invadidos e a perigo (não bastasse o alargamento das portas nas rodoviárias e aeroportos).
Há, até aqui, muita confusão sobre o evento. Como alertou tempos atrás o meu amigo Leandro Beguoci, há uma periferia dentro do centro e um centro dentro da periferia; logo, o centro que frequenta o shopping na Zona Leste não é o mesmo que circula no shopping da Faria Lima. Da mesma forma, não está em xeque o conceito de espaço público, mas de alargamento de espaço privado: as portas de sensor automático dão a impressão de que o monstro encravado na cidade onde antes havia um lago ou uma praça é aberto a todos, mas a segurança particular nos lembra que “todos” não são “qualquer um”. Esse é o ponto que liga o presente ao passado. Um estrangeiro que desembarcasse hoje ou há 50 anos a um shopping da capital paulista mal perceberia que estava no Brasil, um país de maioria negra e parda que há séculos mantém espaços cativos nos colégios e universidades de ponta, cafés, centros culturais e as redações - sim, sem exceção. A população com cara de população, quando entra nesses espaços, é para trabalhar ou servir.
Em um shopping center, não se paga pelo produto. Paga-se pela experiência. Pela sensação de ter acesso a uma ordem distinta dos atropelos das ruas ao estilo 25 de Março. A sensação de não passar calor. De estar protegido. De não ser qualquer um. (Para preservar a ideia, ou o fetiche, é necessário desdenhar os barracos na hora de estacionar ou de pegar fila no caixa do shopping).
A história parece nova, mas não é. Mudam-se os nomes e os rótulos, mas não o cinismo, como lembrou a amiga Rosanne D'Agostino, do portal G1, em sua página no Facebook: “Esse 'rolezinho' na minha infância se chamava 'molecada maconheira na esquina da casa da vó'. Na adolescência eram os 'skatistas coçando o saco' ou os 'surfistas metidos a usar Quilhas e Okley'. Na verdade são todos os mesmos caras que só queriam um espaço pra curtir”. Desses tempos, o que surgiu além de bares e igrejas? Praças, clubes, quadras, parques? Não, lembrou ela: “Permitiram centenas de condomínios fechados, prédios comerciais e shoppings” Mas isso era outro mundo – ou, outro muro, erguido para proteger o mundo de seus olhares e intenções. Alguns se revoltaram. Aprenderam a se expressar. Criaram letras para rap. Para funk. Mas até isso lhes foi tirado: em São Paulo baile funk agora é crime e há uma ordem implícita de que a reunião de dois ou mais adolescentes em determinados lugares dá a eles a pecha de “elementos suspeitos”; a partir daí, tudo é permitido, e nada aliviado. Em uma cidade como São Paulo, a depender de onde se nasce, esta é a única concessão autorizada: nascer. A outra é morrer.
Sem espaços de lazer ou expressão, a migração para uma área de convívio, privada mas de portas aparentemente abertas, chega a ser natural, e essa transposição transformou um recado velado em um grito primitivo: “este não é o seu lugar”. O recado é agora expresso por seguranças privados, autoridades públicas, pela polícia, pelos ofendidos em redes sociais e pelos juízes. Não poderiam ser mais claros.
Na sexta faixa do álbum “Era uma vez um homem e seu tempo”, de 1979, Antonio Carlos Belchior colocou um grande espelho diante de um país dividido não simplesmente entre opressores e oprimidos, mas entre quem “conhece” e quem “não conhece” o seu lugar. Aos que conhecem, afagos e ossos. Aos que não conhecem, os pontapés. É desse país que ele falava em “Conheço o meu lugar”, e é este o país escancarado pelo recalque de quem hoje cita a ordem e a baderna para ter de volta uma praça de alimentação para chamar de sua. Ao ver as imagem dos golpes contra os jovens (de dez? Doze? Quatorze anos?) que não entenderam o alerta e as proibições invisíveis de um país intocado, fica impossível não se lembrar dos versos de quem um dia berrou (e depois calou, de tristeza ou por calar) contra tudo isso: “Ninguém é gente!  Nordeste é uma ficção! Nordeste nunca houve!  Não! Eu não sou do lugar dos esquecidos! Não sou da nação dos condenados! Não sou do sertão dos ofendidos! Você sabe bem: Conheço o meu lugar...”


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Imprensa se surpreende com rolezinho porque ignora periferia, diz ex-Folha (Notícia)

Do Portal Comunique-se – 31/01/2014

Em painel realizado na sétima edição da Campus Party, evento que acontece nesta semana em São Paulo, a ex-repórter da Folha de S. Paulo, Laura Capriglione, falou sobre a cobertura da mídia para pautas com assuntos "manifestações", "rolezinhos" e "bailes funks". De acordo com ela, os "veículos off-line" ficaram surpresos porque restringem a cobertura "a um quadrado de 4,6 km" da cidade.
Segundo informações da Folha, Laura afirmou que esse é um dos pontos que explica o motivo de o jornalismo tradicional estar em crise. "Há cada vez menos histórias de pessoas nos jornais, (...) Eles (os jornais) agora são preenchidos por material de assessorias de imprensa e colunas de opinião".
No debate, que tinha como tema "Reportagem no divã, reflexões do mundo off-line", estavam presentes os jornalistas André Caramante e Alberto Dines. Também profissional da Folha, Caramante comentou sobre as novas tecnologias e a influência na comunicação. "Hoje todo mundo tem um iPhone e um iPad, mas não vejo isso com bons olhos. Com isso, se esqueceu que lugar de jornalista é na rua, não na redação".
Dines discordou com a informação de que o jornalismo está em crise, mas ressaltou que o mundo digital trouxe alterações no modo de pensar das pessoas. "A confiança ilimitada no mundo digital nos tira a capacidade analógica de pensar, de refletir".

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