quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Entrevista | Hugh Lacey


Valores e atividade tecnocientífica
Tecnociências e descontrole tecnológico serão alguns dos temas abordados por Hugh Lacey, um dos filósofos mais renomados nesse imbricado campo de atuação filosófica

Por Alexandre Quaresma

Se considerarmos que desenvolvimentos tecnológicos não significam necessariamente desenvolvimento humano, e que os benefícios desses desenvolvimentos se distribuem de maneira irregular na sociedade que os gera, veremos que há uma revolução disruptiva em marcha, e isso, por si só, obriga-nos, de imediato, a deslocar nosso foco de atenção do ser humano, e suas inúmeras organizações sociais, para estendermos nosso olhar crítico diante de suas criações tecnológicas. Até porque sociedades criam tecnologias, cada vez mais sofisticadas, que, por sua vez, transformam inelutavelmente as mesmas sociedades que as criam em um processo “infinito”. E, nesse rodopiar turbilhonante, vão se transformando também os seres humanos que compõem tais sociedades, o meio ambiente e a própria cultura, pois esses três níveis são diretamente influenciados segundo as técnicas e tecnologias que vão sendo criadas e utilizadas.

Quem irá clarificar a nossa compreensão acerca desses temas tão instigantes da pós-modernidade é Hugh Lacey, que se ocupa cotidiariamente em pensar a dinâmica relação entre tecnociências e sociedades, e que gentilmente concedeu essa entrevista à revista Filosofia Ciência&Vida. Hugh Lacey é professor emérito de Filosofia de Swarthmore College, Swarthmore, Pennsylvania, EUA, e pesquisador colaborador no projeto temático USP/Fapesp “Gênese e significado da tecnociência”. É autor de diversos livros de Filosofia da Ciência, entre eles Valores e atividade científica, Valores e atividade científica II e A controvérsia sobre os transgênicos.

FILOSOFIA • Diante do contexto, que envolve valores e atividade tecnocientífica – indagamos –, qual é a força principal que o move aos estudos desses fenômenos sociotécnicos e antropotécnicos de nossa civilização?
Lacey •
 Meu trabalho recente trata da interação entre as atividades científicas e os valores éticos e sociais; discute o impacto dos valores na conduta da Ciência, e como os resultados científicos afetam os valores incorporados nas instituições sociais. Estou motivado fortemente a colaborar com aqueles que estão tentando trazer a seguinte questão ao centro da agenda da pesquisa científica: Como deve ser conduzida a pesquisa científica, por quem e com quais prioridades, e utilizando quais tipos de metodologias, mas como (em colaboração com quais movimentos e instituições) deve ser o conhecimento científico utilizado, as tecnologias desenvolvidas e administradas, de modo a assegurar que a natureza seja respeitada, que seus poderes regenerativos não sejam solapados, e que sejam restaurados sempre que possível, e que os direitos e o bem-estar de todos e as condições para a participação construtiva numa sociedade democrática sejam fortalecidos em todo o mundo? Quando levanto essa questão, questiono o fato de essa transformação ser inevitável a longo prazo; e resisto à mentalidade tecnocrática predominante nas instituições científicas atuais que é responsável pelas tendências correntes de tornar a Ciência uma tecnociência, que serve a interesses ligados ao capital e ao mercado. Sem dúvida, fenômenos sociotécnicos e antropotécnicos se integram nas principais instituições sociais de nossa época, e nas trajetórias delas para o futuro, porém é importante reconhecer que os seus benefícios amplamente valorizados são acompanhados por impactos negativos no ambiente, nas vidas humanas e nos arranjos sociais. Assim, esforços devem ser feitos para entender e avaliar esses fenômenos à luz de como possam servir a interesses e projetos vinculados aos valores salientados na minha questão supracitada; e para explorar as possibilidades de projetos alternativos que possam ter benefícios comparáveis ou maiores sem impactos tão negativos.

FILOSOFIA • Num mundo cada vez mais tecnicizado, como poderemos garantir a manutenção dos valores que acreditamos serem os mais significativos e importantes de nossa humanidade?
Lacey • 
Não poderemos garantir o fortalecimento ou a manutenção dos valores da justiça social, sustentabilidade, bem-estar de todos e democracia participativa. As tendências socioeconômicas atuais, enraizadas profundamente em instituições poderosas, enfraquecem a manifestação desses valores; e a Ciência, conduzida como tecnociência, que serve aos interesses ligados ao capital e ao mercado, contribui para fortalecer essas tendências. A Ciência poderia ser conduzida de uma maneira diferente, em que visaria à geração do conhecimento e que serviria a projetos que incorporam os valores já mencionados, e assim contribuiria no sentido de introduzir condições nas quais tais valores pudessem ser fortalecidos.1 Mas a Ciência não pode ser conduzida de outra maneira sem um processo de transformação que envolveria colaboração com uma multiplicidade de agentes, movimentos e instituições. Embora tal processo não garanta que os valores da justiça social (e os outros) sejam mantidos, ainda assim contribuiria para nutrir a aspiração de que uma transformação social é possível é possível, gerando arranjos em que estes valores seriam incorporados mais adequadamente.

FILOSOFIA • O senhor concorda com essa ideia de tecnociência “descontrolada”, cujos fins quase nunca podem ser direcionados intencionalmente, para solução de problemas sociais, por exemplo, além de ainda gerarem outros problemas novos, dantes inexistentes?
Lacey •
 Inovações tecnocientíficas – mesmo quando direcionadas para resolver um problema social, por exemplo, relacionado à saúde – estão sendo desenvolvidas e implementadas com a finalidade de fortalecer os interesses do capital e do mercado. Um novo medicamento não é só um objeto com uma certa composição química que tem efeitos no corpo humano, mas é também uma mercadoria, cujo uso e disponibilidade são controlados de acordo com os direitos de propriedade intelectual. A pesquisa que fornece a evidência da eficácia do medicamento não explica nada sobre os efeitos que ele tem em virtude de ser uma mercadoria. Da mesma maneira, a pesquisa que fornece a evidência da eficácia do uso das culturas transgênicas em combinação com um pesticida particular não explica nada sobre os seus potenciais efeitos ecológicos e sociais. Nesse contexto, a implementação de inovações tecnocientíficas – mesmo quando contribuem efetiva e propositadamente para resolver um problema particular – provavelmente vai gerar problemas sociais novos e não antecipados. A pesquisa, conduzida no espírito da minha resposta à sua questão inicial, poderia antecipar alguns desses problemas, e apontar na direção de abordagens alternativas. A história, porém, é aberta, e nunca podemos esperar e antecipar a sua trajetória em detalhe e todas as possibilidades novas que podem surgir.

FILOSOFIA • Segundo a sua compreensão, qual seria a gênese e o significado da tecnociência, título do projeto temático de que o senhor participa como professor convidado no Departamento de Filosofia da USP, ou seja, como se origina a tecnociência e o que ela significa?
Lacey •
 O termo “tecnociência” se refere à dificuldade de separar Ciência e tecnologia nas tendências predominantes da pesquisa científica contemporânea.2 Vinculado a esta, a ênfase principal dentro dessas tendências não é para aumentar nosso entendimento acerca dos fenômenos com o horizonte do entendimento compreensivo do mundo. Em vez disso, trata-se da geração de inovações, que, desse modo, vão aumentando o nosso poder de fabricar, de efetuar e de intervir na natureza ao serviço de fins úteis. Na tecnociência, a tecnologia mais avançada é utilizada para produzir instrumentos, objetos experimentais e novos objetos e estruturas que tornam possível a obtenção do conhecimento de eventos e estados de coisas de domínios novos; especialmente conhecimento sobre as novas possibilidades do que podemos fabricar e efetuar, como os horizontes da inovação prática, industrial, médica, militar e do crescimento econômico, sempre em vista. A Ciência Moderna é marcada pela existência de relações mutuamente reforçadoras entre a adoção das suas metodologias prioritárias – aquelas que servem na procuração do conhecimento e entendimento amplo dos fenômenos do mundo – e a sustentação de valores vinculados ao aumento dos poderes humanos para intervir na natureza e controlá-la.3 Por causa disso, embora tradicionalmente a ênfase tenha sido principalmente sobre a obtenção do entendimento dos fenômenos do mundo, as implicações utilitárias do conhecimento científico eram sempre discutidas e buscadas – até um ponto que, desde Bacon, fazia parte da tradição a tendência de alguns cientistas conduzirem sua pesquisa para fins utilitários. Na tecnociência, torna-se efetivamente o objetivo primário da pesquisa científica para aumentar nosso poder de controlar – assim, a tecnociência representa o fortalecimento e a perpetuação de uma tendência sempre presente na tradição científica. Ao mesmo tempo, o que se considera como “fins úteis” tende a ser interpretado sob a luz dos valores do capital e do mercado. Portanto, surge a ideia de que a Ciência visa a inovações tecnocientíficas que contribuam para o crescimento econômico, e a Ciência institucionalizada se torna em grande medida tecnociência orientada comercialmente.4

FILOSOFIA • Como o senhor vê a preponderância da lógica econômico-capitalista no fomento, controle, patente e exploração dos pretensos resultados e benefícios dessas novas realidades tecnológicas, e como as comunidades mais carentes poderiam se apropriar dessas tecnologias?
Lacey •
 A tecnociência orientada comercialmente tem desenvolvido e implementado muitas inovações que beneficiam, difundem e contribuem fortemente para a transformação radical do mundo em que vivemos, na medida em que aumentam as capacidades humanas para agir e resolver problemas que até então permaneciam intratáveis. Ao mesmo tempo, contribui causalmente para a corrente crise ambiental, com seus aspectos sociais devastadores, mas não produz um conhecimento adequado capaz de tratar essa crise. Além disso, os benefícios da tecnociência não vêm sendo uniformemente distribuídos entre pobres e ricos – pior que isso, sob as condições socioeconômicas predominantes, grande contingente de empobrecidos têm sofrido deveras, material e socialmente, como consequência de tal progresso. Isso enfraquece valores democráticos essenciais – em particular, o respeito aos direitos humanos e à capacidade dos cidadãos para assumir papel participativo na conformação de práticas que atendam às suas necessidades básicas. O fortalecimento desses valores democráticos requer esforços para descobrir usos dos resultados da tecnociência orientada comercialmente para servir mais adequadamente aos interesses públicos e democráticos e democrático, mas também o redirecionamento das práticas e instituições da Ciência para tornarem-se mais responsáveis.

FILOSOFIA • O senhor acredita que esse contínuo processo de desenvolvimento tecnológico favorece ou desfavorece a inclusão social e a pluralidade das populações mundiais?
Lacey •
 Interpreto “inclusão social” à luz dos valores da justiça social e outros valores já mencionados, em que se inclui o valor do fortalecimento da agência do mundo todo, a sua capacidade para agir efetivamente informada pelos seus próprios valores autenticamente endossados, em harmonia com os seus valores culturais. Isso requer o desenvolvimento de tecnologias – “tecnologias sociais”5 – que incorporem esses valores. A continuação do desenvolvimento tecnológico dentro da trajetória do capital e do mercado não produzirá as tecnologias necessárias.

FILOSOFIA • Como as sociedades podem preservar seus valores mais essenciais e existenciais diante de técnicas biotecnológicas drásticas, como a clonagem humana e a manipulação genética, por exemplo, cujos experimentos nos assombram com sua extrema desumanidade?
Lacey •
 Comentarei apenas sobre as responsabilidades dos cientistas vinculadas a esses desenvolvimentos. Tende ser pressuposto nas instituições científicas de destaque não só que a pesquisa científica visa a inovações tecnocientíficas que contribuam para o crescimento econômico, mas também que a inovação, mais ou menos sem limites, deve ser procurada sempre em mais domínios, e que normalmente a eficácia de uma inovação é suficiente para legitimar eticamente a sua implementação social. Tais pressupostos dão força ao que você denomina “desumanidade” que acompanha essas inovações; e a ação à luz dela solapa a integridade da Ciência e o seu valor tradicional de ser parte do patrimônio compartilhado da humanidade. É responsabilidade dos cientistas desafiar esses pressupostos, e trabalhar na direção da reinstitucionalização da Ciência para que a questão, levantada antes, adquira significado amplo. A tentativa de preservar os valores da justiça social requer atividades de uma grande variedade de movimentos em busca da mudança social. A menos que os cientistas assumam as suas responsabilidades, e em colaboração com esses movimentos desafiem os pressupostos mencionados, ficará fácil para os proponentes da prioridade da inovação tecnocientífica continuarem a rechaçar toda crítica como “fora de contato com os nossos tempos”.

FILOSOFIA • Quando surgir um ser humano inteiro clonado, como um fato já dado e consumado, assim como aconteceu com a famigerada ovelha Dolly – indagamos –, o que isso significará para a humanidade do ponto de vista dos arquétipos simbólicos estruturais que nos norteavam até então de criador e criatura?
Lacey •
 Não sei se a clonagem de um ser humano completo está ao alcance das possibilidades tecnocientíficas futuras. Questiono, porém, o significado científico e humano da exploração sem limites de possibilidades desse tipo. À luz dos valores da justiça social, qual seria o valor – indago – de produzir um clone de um ser humano completo, especialmente desde que, dado o estado do mundo contemporâneo, seria provável que tais clones pudessem ser controlados de acordo com regimes de direitos da propriedade intelectual? A aspiração de produzir clones humanos me parece simplesmente refletir sobre a húbris que frequentemente acompanha a tecnociência orientada comercialmente, a ideia de que os seres humanos “inteligentes” possam fazer “melhor” do que Deus ou natureza, esquecendo o fato de que as habilidades técnicas dos inovadores tecnocientíficos não têm muito valor para explorar e administrar as consequências socais, humanas e ecológicas das implementações das suas inovações.

FILOSOFIA • Como afirma Habermas6, o clonado e manipulado geneticamente pode se sentir insatisfeito com sua condição físico-existencial determinada por outrem, e essa crise, segundo ele, não tem solução. O senhor concorda com Habermas?
Lacey •
 Isso reforça a importância do desenvolvimento de programas alternativos de pesquisa e desenvolvimento que tenham fins distintos dos de produzir inovações tecnocientíficas desses tipos.

FILOSOFIA • Seria digna, moral e humanamente aceita, segundo o seu entendimento, a produção bioindustrial de seres humanos clonados, a partir do material biológico do próprio interessado na extração de um órgão específico, ou diversos deles, por exemplo? Algo como cultivar um estoque vivo de “partes sobressalentes” (humanas?) para abastecer um hipotético “parque humano”?
Lacey •
 Quaisquer respostas parciais que consideremos não devem tratar dos assuntos éticos sobre a clonagem separadamente dos processos e resultados da produção bioindustrial. É muito provável que as respostas variarão com os casos particulares, com os métodos utilizados, e com assuntos de posse, lucro e controle sob direitos da propriedade intelectual. Nesse momento, porém, as questões são sobre possibilidades conjeturais, sobre especulações, cujos detalhes não são conhecidos. Questões éticas muito mais urgentes têm a ver com a seguinte indagação: Como podemos fortalecer a agenda da justiça social, sustentabilidade, bem- -estar de todos e democracia participativa? Querendo ou não, a produção bioindustrial de seres humanos clonados para ser digna, moral e humanamente aceita, dependeria de ela, de fato, fazer uma contribuição positiva para fortalecer esses valores que mencionei, todavia, conforme já lhe respondi, estou cético que tais técnicas poderiam fazer uma contribuição desse tipo.
A busca contínua das inovações tecnocientíficas, sempre em novos domínios, sob a influência de valores ligados à dominação da natureza, pode conduzir a consequências trágicas para a civilização

FILOSOFIA • Ainda sobre a nossa Fisiologia, o senhor concorda com a visão reducionista e mecanicista, muito em voga atualmente na academia, que enxerga o corpo humano como uma máquina, e ainda prevê a sua ontologia por meio de redutoras metáforas maquínicas?
Lacey •
 Não. Os seres humanos são agentes, seres corporais que também têm dimensões conscientes/mentais/ racionais e sociais que não podem ser reduzidas à dimensão corporal. Dessemelhante do comportamento das máquinas, o comportamento humano não pode ser explicado adequadamente em termos de estruturas mecânicas (já que é fisiológico) e as interações e os processos dos seus componentes. O florescimento humano envolve a interação de todas as dimensões dos seres humanos; depende (entre outras coisas) do cultivar da agência racional e das condições sociais para a sua boa realização. As análises reducionistas são particularmente insensíveis ao caráter social essencial dos seres humanos e carecem de recursos ontológicos para fazer sentido quanto ao valor da solidariedade.

FILOSOFIA • Edgar Morin afirma que a lógica tecnológica “expulsa o ser do ser, a vida da vida, e identifica o seu objeto com aquilo que é manipulável por natureza: o artefato. E este é o mito bárbaro que se formou no conhecimento científico e que tende a aliar-se com outras formas de barbárie”.7 O senhor concorda com essa afirmação?
Lacey •
 Acho que a tecnologia frequentemente – quando os artefatos (objetos tecnológicos) incorporam valores vinculados à dominação da natureza – é praticada e institucionalizada de uma maneira coerente com a lógica que Morin descreve. Os objetos tecnológicos sempre incorporam alguns valores éticos e sociais, e seus usos possíveis nos ambientes sociais requerem que eles mesmos incorporem alguns valores específicos, não necessariamente aqueles da dominação da natureza. A identidade de um objeto tecnológico – o tipo de objeto que ele é e os valores que incorpora – é uma função complexa da sua organização física/química/biológica, a sua gênese social e os interesses por trás da sua fabricação e/ ou utilização, as suas técnicas associadas e know- -how, os seus empregadores, e contextos (sociais, econômicos, ambientais) dos seus usos. Podemos incorporar valores vinculados às posturas frente à natureza que podem não ser entendidas em termos apenas de dominação de dominação: por exemplo, as posturas de respeito, preservar/restaurar, acomodar, sustentar, cultivar, contemplar, gozar.

FILOSOFIA • “A técnica assim reivindicada instaura, pois, um mundo à sua imagem. O acaso é excluído, pois o acaso faz parte do mundo real, natural, que a utopia mantém precisamente a distância. Mundo sem acaso, sem impureza, sem morte nem decomposição, sem poeiras nem extravagâncias, sem jogos nem prazer, e sem outra respiração que não seja a que comanda a enorme maquinaria”.8 Inspirados nas reflexões de Sfez, perguntamos: que mundo: que mundo é esse, afinal, que estamos construindo com nosso próprio engenho e criatividade?
Lacey •
 A Ciência Moderna é marcada pela existência de relações mutuamente reforçadoras entre a adoção das metodologias prioritárias na Ciência Moderna e a sustentação de valores vinculados ao aumento dos poderes humanos para intervir na natureza e controlá-la. Cedo, na tradição científica moderna, esse poder era vinculado à concepção metafísica do mundo como uma enorme e complexa máquina, já que a Ciência/ tecnologia representava o mundo à sua própria imagem. Contudo, a Ciência contemporânea não é mais assim. As leis da Mecânica Quântica, por exemplo, são probabilísticas em caráter, e o acaso (e a morte) desempenha um papel essencial na teoria da evolução. Nem os cientistas pensam o mundo e a natureza mais em termos de máquinas. Não obstante, existem pessoas que pensam que – por meio das nossas intervenções na natureza – podemos transformar o mundo num objeto que fica cada vez mais sob o nosso controle, como se as incertezas da implementação das inovações tecnocientíficas pudessem ser superadas ou controladas por novas inovações tecnocientíficas. Isso é simplesmente a húbris, a atribuição de poderes ao nosso próprio engenho e criatividade que não recebem nenhum apoio de nossa longa experiência em práticas de inovação tecnológica. Esse tipo de húbris não contribui em nada para construir um mundo que incorpore os valores da justiça social, sustentabilidade, bem-estar de todos e democracia participativa.

FILOSOFIA • Até que ponto o senhor acredita na ideia de que a biologia humana poderá, em algum momento, perder suas características primordiais e até mesmo se degenerar devido à intrusividade das tecnologias e tecnociências da contemporaneidade?
Lacey •
 O registro científico atual não fornece uma base forte para fazer especulações sobre essa questão, e não gosto de oferecer previsões sem base empírica razoavelmente forte. Geralmente, o interesse em especulações desse tipo está presente dentro daqueles que visam à exploração das possibilidades tecnocientífica sem limites e sem consideração com o seu potencial valor humano. Obviamente não sabemos quais possibilidades vão se tornar realizáveis no futuro. Em vez de fazer suposições a respeito disso, prefiro enfatizar a urgência de colocarmos energias na exploração das possibilidades que possam servir os valores da justiça social, sustentabilidade, bem-estar de todos e democracia participativa.

FILOSOFIA • Se é a concentração de riqueza que move a máquina tecnocientífica contemporânea, sempre a se potencializar acefalamente, o que nos garantirá que a civilização humana não possa ser tragada por suas próprias criações tecnológicas?
Lacey •
 A busca contínua das inovações tecnocientíficas, sempre em novos domínios, sob a influência de valores ligados à dominação da natureza, pode conduzir a consequências trágicas para a civilização. Não existem garantias na história. Precisamos continuamente indagar a respeito de áreas do conhecimento humano – tais como inteligência artificial, por exemplo –, se a pesquisa, desenvolvimento e inovação presentes nelas podem contribuir em relação aos valores que tenho enfatizado nesta entrevista; e, se necessário – como penso –, reorganizar a pesquisa à luz das respostas.

FILOSOFIA • No Brasil, por exemplo, onde, mesmo diante de tecnologias extraordinárias, esgotos correm a céu aberto e populações inteiras consomem águas não tratadas, como podemos falar de alta tecnologia, já que, na ponta da rede social, o tecido social se esgarça e se rompe devido ao abandono, à má vontade política e à improbidade com verba pública?
Lacey •
 Deve ser uma prioridade da tecnologia de ponta solucionar os problemas de saúde de grande número da população de baixa renda do mundo. Isso não acontecerá, porém, onde a pesquisa permanece sob o controle de interesses ligados ao capital e ao mercado; uma transformação solicitaria abordagens à pesquisa médica (a respeito, por exemplo, das causas ambientais de doenças, e participação popular em programas para a sua prevenção e tratamento) que não envolvam as mesmas metodologias daquelas que visam (e utilizam) às tecnologias de ponta. Certamente, não quero diminuir o valor de muitas tecnologias médicas e o esforço para o desenvolvimento de mais delas; para mim, a questão fundamental tem a ver com a comparação (agora, neste momento histórico) do valor delas com o valor dos desenvolvimentos potenciais que poderiam tratar diretamente as necessidades e os problemas da maioria pobre.

FILOSOFIA • Em seus escritos sobre os transgênicos, o senhor insiste sempre na salutar – diríamos nós – busca de alternativas? Qual seria a alternativa possível e viável em termos de aliar valores (humanísticos, bioéticos e ecoambientais) às atividades tecnocientíficas humanas?
Lacey •
 Escrevi frequentemente a respeito do caso dos transgênicos (uma inovação tecnocientífica típica).9 Indiquei que os transgênicos foram introduzidos na agricultura contemporânea por interesses vinculados ao capital e o mercado, sem, antes, tratar as questões relativas “ao campo das alternativas”.10 Quais métodos agrícolas – convencionais, transgênicos, orgânicos, agroecológicos, biodinâmicos, indígenas, de subsistência etc. – e em que combinações e com quais variações localmente-específicas, poderiam ser sustentáveis e suficientemente produtivos (quando acompanhado por métodos viáveis de distribuição) a fim de satisfazer as necessidades de alimentação e nutrição da população do mundo inteiro por um futuro previsível? Existem alternativas com capacidade produtiva pelo menos tão grande quanto a dos métodos transgênicos, e que poderiam satisfazer as necessidades de alimentação e nutrição em que métodos transgênicos podem ter pouca aplicabilidade (por exemplo, em pequenas propriedades agrícolas em regiões empobrecidas)? Quando essa questão é colocada, os méritos dos transgênicos precisam ser avaliados em comparação com aqueles das práticas agrícolas que não são baseadas nas inovações tecnocientíficas. A agroecologia, por exemplo, é um tipo de lavoura que tem muitos adeptos e sucessos no Brasil, e que almeja satisfazer – simultaneamente e numa balança determinada por fazendeiros e suas comunidades – uma variedade de objetivos (que refletem os valores da justiça social, sustentabilidade, bem-estar de todos e democracia participativa), inclusive de produtividade, sustentabilidade dos agroecossistemas e proteção da biodiversidade, a saúde dos membros das comunidades rurais e os seus arredores, e o fortalecimento da cultura e agência dos povos locais.11

FILOSOFIA • “De fato, as consequências da inovação tecnológica são quase sempre mais complicadas do que os inovadores esperavam”.12 Se a afirmação de Kneller é verdadeira, como administrar os riscos sempre iminentes de novas tecnologias e práticas antropotécnicas de extrema penetração e poder determinístico, como a manipulação do genoma humano, por exemplo?
Lacey • É certo que as consequências da inovação tecnológica frequentemente são mais complicadas do que os inovadores esperavam. Todas as inovações ocasionam consequências, que não são pretendidas e (frequentemente) não podem ser previstas ou antecipadas, e que podem ser potencialmente prejudiciais (bem como outras que podem ser benéficas). Porém, com tempo e pesquisa, muitas dessas consequências podem se tornar antecipáveis, e o fato de sempre haver consequências não antecipadas não fornece uma razão para ignorar esforços para antecipar qualquer uma que possamos conceber. No caso das inovações que certamente vão ocasionar consequências de grande significado ético – aquelas que envolvem a manipulação do genoma humano, por exemplo –, a prudência (e a ética) demanda a exploração séria das consequências antes da implementação de uma inovação, e também a formação de regulamentos designados para conter os efeitos prejudiciais; e demanda também o monitoramento contínuo das consequências atuais depois da implementação, para que a inovação possa ser retirada de uso se for demonstrado que causa prejuízos não aceitáveis. O Princípio de Precaução nos diz que as inovações devem ser administradas dessa maneira.13

FILOSOFIA • Criamos – escreve Edward O. Wilson – uma civilização de Guerra nas estrelas, com emoções da Idade da Pedra, instituições medievais e tecnologia divina”. Diante disso, por fim, como o senhor concebe o futuro da humanidade?
Lacey •
 O futuro da Terra será o resultado da ação coletiva humana. Não é algo determinado, e não pode ser antecipado em qualquer detalhe. Não é determinado que seja o resultado das trajetórias atuais das forças aliadas à inovação tecnocientífica, acompanhado dos valores do capital e do mercado. Pode ser esse o resultado; pode ser um desastre causado pelos desdobramentos dessas trajetórias; ou nem uma coisa nem outra. Todos nós temos responsabilidade com relação ao que o futuro será; e enfatizo a importância de acharmos maneiras de agir e colaborar uns com os outros para tentar criar um futuro que possa incorporar mais adequadamente os valores concernentes à justiça social, sustentabilidade, bem-estar de todos e democracia participativa. Eu não subestimo o poder dos interesses que impulsionam a trajetória dominante e as dificuldades envolvidas no desafio deles. Contudo, o futuro, que eu penso, digno de uma luta prolongada para se criar, é objeto de esperança. Se esse futuro vier a ser, será o resultado dos compromissos e das ações em colaboração daqueles cujas vidas expressem esses valores.

1 LACEY, H. Ciência, respeito à natureza e bem-estar humano, Scientiae Studia 6, n. 3, 2008, p. 297-327
2 LACEY, H. Reflections on science and technoscience, Scientiae Studia v. 10 (Special Issue), 2012, p. 103-128
3 LACEY, H. Valores e atividade científica 1. São Paulo: Associação Filosófica “Scientiae Studia”/Editora 34, 2008; Valores e atividade científica 2. São Paulo: Associação Filosófica “Scientiae Studia”/Editora 34, 2010
4 KRIMSKY, S. Science in the private interest: has the lure of profits corrupted biomedical research? Lanham: Rowman & Littlefield, 2003
5 Rede de Tecnologia Social. Disponível em: http://www.rts.org.br/?set_ language=pt-br&cl=pt-br
6 HABERMAS, 2004, p. 86
7 MORIN, 2001, p. 434
8 SFEZ, 1995, p. 110
9 P. ex., A controvérsia sobre os transgênicos: questões científicas e éticas. São Paulo: Editora Ideias e Letras, 2006
10 LACEY, H. Ciência, respeito à natureza e bem-estar humano, Scientiae Studia 6, n. 3, 2008, p. 297-327
11 ALTIERI, M. Agroecologia: a dinâmica produtiva da agricultura sustentável. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1998. Disponível em: http://www. embrapa.br/publicacoes/index_htm
12 KNELLER, G. 1980, p. 263
13 LACEY, H. O princípio de precaução e a autonomia da Ciência, Scientia Studia 4, n. 3, 2006, p. 373-392

Alexandre Quaresma é pesquisador de tecnologias e consequências socioambientais. É membro da Rede de Pesquisa em Nanotecnologia, Sociedade e Meio Ambiente, vinculado à Fundação Amazônica de Defesa da Biosfera e membro do Conselho Editorial de Ciência e Sociedade da Revista Internacional de Ciencia y Sociedad, do Common Ground Publishing. a-quaresma@hotmail.com

http://filosofiacienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/89/artigo302328-3.asp

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Quem alimenta o leão (Reportagem)

Da Carta Capital – 10/02/2014

Ao onerar mais o consumo que a renda e a propriedade, o sistema tributário brasileiro pune os mais pobres e alivia a carga do topo da pirâmide social

por Samantha Maia

Daqui a mais ou menos seis meses, encerrada a Copa do Mundo, o Brasil mergulhará em uma nova campanha presidencial. Ainda não se sabe qual tema "novo" dominará os debates. Em 2010, o aborto consumiu um tempo precioso dos candidatos e, pior, esgotou a paciência do eleitorado, em desfavor de assuntos mais pertinentes. A "velha" agenda é, porém, fartamente conhecida. Tanto a candidata à reeleição, Dilma Rousseff, quanto os seus prováveis adversários, Aécio Neves e Eduardo Campos, vão prometer, antes de o galo cantar três vezes, uma série de reformas para melhorar a vida dos cidadãos. Entre elas não faltarão as propostas de reformulação do sistema tributário.
A mudança nos tributos é uma pauta antiga dos empresários e da chamada classe média. A carga de impostos de 36% do Produto Interno Bruto está bem acima da média dos países de economia semelhante à brasileira. O sistema é burocrático, confuso, pune quem deseja produzir, encarece os produtos nas gôndolas e não estimula a inovação. Em resumo, é anticompetitivo e atrasado. Segundo a consultoria Deloitte, as empresas de pequeno porte gastam 3,53% do seu faturamento somente para cuidar da complexa administração dos tributos.
Dito isso, o debate sobre o assunto tem servido muito mais a mistificações do que ao esclarecimento das ideias, embora não faltem informações a respeito (especialistas de distintas filiações ideológicas e diferentes nações produziram nos últimos anos diagnósticos interessantes sobre os impostos brasileiros). Os dados, em boa medida, contradizem as versões dominantes sobre onde realmente se localizam as distorções.
Um problema central, apontam os estudos, está no fato de a estrutura brasileira ser um fator determiante para o aprofundamento das diferenças regionais e da desigualdade social. O sistema onera fortemente o consumo e pouco a renda. Os tributos sobre o patrimônio, raramente lembrados nas discussões, são metade do cobrado nas nações desenvolvidas, segundo dados da insuspeita Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), clube dos países ricos. Na outra ponta, os impostos recolhidos em mercadorias e serviços alcançam 45% da carga total, um peso insuportável para quem se propõe a produzir. "Quanto menor o nível de renda de uma família, maior a destinação ao consumo.e maior a exposição à tributação mais alta.
Essa é a origem básica da regressividade", resume a diretora da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, Maria Helena Zockun. A palavra regressividade significa que quem grita menos, a imensa maioria desinformada, é uma espécie de Atlas mitológico: carrega nas costas u m modelo iníquo e vilipendiado pela sonegação dos espertos e as manobras contábeis urdidas por advogados bem remunerados.
Os cidadãos que mais reclamam em geral são menos molestados pelo famoso Leão. O quadro à página ao lado é ilustrativo.
Enquanto um trabalhador que recebe salário mínimo deixa, ao consumir, 37% de sua renda nos cofres do governo, quem aufere 22 mil mensais desembolsa apenas 17%, de acordo com o seu padrão de gastos.
Nem se fale da porção superior da pirâmide social, o nosso 1%. O Brasil, em comparação à maioria dos países e em especial às nações desenvolvidas, além de tributar mal o patrimônio, como já exposto, também cobra poucos impostos sobre a renda e praticamente nada quando se trata da transmissão de herança. A maior alíquota do Imposto de Renda é de 27,5%, ante 55,9% nos Estados Unidos, para citar a meca do livre-mercado. Mesmo assim, trata-se de um dado meramente estatístico: ninguém paga 27,5% de IR. Com os descontos por faixa de renda válidos a todos os contribuintes e as deduções permitidas (os gastos com escola, saúde e previdência privada podem ser em parte descontados), um indivíduo com salário de 22 mil por mês consegue derrubar a alíquota total sobre os seus ganhos para 17%. Na média, o porcentual efetivo no Brasil não ultrapassa 10% da renda.
Outro comparativo da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe expõe o resultado dessa distorção. Por si só, o sistema brasileiro, entre a arrecadação e a distribuição dos recursos, reduz em meros 3,6% a desigualdade de renda, um pouco abaixo da média medíocre da América Latina (3,8%), subcontinente campeão das disparidades sociais. Entre 15 países da União Europeia, o Fisco é responsável por uma redistribuição média de 32,6%. Na Dinamarca, o índice alcança 40,8%.
Alguém dirá: o Estado não oferece serviços à altura dos impostos pagos anualmente pela sociedade. E fato, em parte. A saída estaria, portanto, em uma redução radical da carga tributária, certo? Não, diz o economista José Roberto Afonso, pesquisador do Ibre. "O desafio não é reduzir a carga, mas melhorar a sua qualidade, com a diminuição dos impostos indiretos, perversos, e o aumento dos diretos, mais justos."
Nos últimos anos, Afonso tem se dedicado ao tema dos impostos e produz estudos fundamentais para entender as iniquidades e ineficiências do sistema no Brasil. Antes que algum liberal o acuse de sofrer a doença "do estatismo ou do comunismo", seria bom lembrar sua trajetória. O economista é historicamente ligado ao PSDB e, em especial, ao ex-tudo-menos-aquilo-que-ele-realmente-gostaria-de-ser José Serra.
Afonso faz uma ressalva ao impostômetro, o festejado medidor da Associação Comercial de São Paulo que atualiza a cada segundo o total de tributos pagos no País. Segundo ele, o valor global pouco explica a estrutura perversa das cobranças. O 1,7 trilhão de reais indicado no painel como o total no ano passado esconde uma informação reveladora: quem recebe acima de 30 salários mínimos precisou trabalhar três meses a menos para pagar o seu quinhão do que um cidadão da base da pirâmide social. "Ninguém está incomodado, pois os mais prejudicados não têm voz, e os outros ficam quietos. O debate não ganhou densidade, é um tema árido, os mais pobres nem percebem que pagam imposto, e fica por isso mesmo", diz Zockun.
Embutidos nos preços, os impostos indiretos (ICMS, ISS,IPI,PIS e Cofins) passam praticamente despercebidos, apesar de seu enorme peso na arrecadação. A soma das alíquotas é, em média, de 68%, ante 16% na média do máximo taxado em 31 países que adotam tributos semelhantes, segundo levantamento da Fipe. Desde junho de 2013, uma lei exige a decomposição, na nota fiscal, dos impostos, uma forma de o comprador ter a exata noção de quanto paga ao adquirir um produto ou serviço. Os comerciantes reclamam, porém, da dificuldade em fazer o detalhamento, dada a complexidade do sistema tributário.
"Saber o quanto se paga na aquisição de um bem poderia provocar uma pressão da sociedade por uma reforma tributária, mas não há solução fácil", diz Clemente Ganz Lúcio, diretor do Dieese. Um primeiro passo, diz Zockun, teria sido aprovar, no Senado, uma proposta de 2008 que previa o estabelecimento de um imposto único nacional sobre valor agregado, aos moldes do IVA europeu. "O projeto não avançava sobre a regressividade, mas, ao simplificar o sistema e mostrar o imposto nas notas fiscais, surgiria alguma reação de baixo", acredita a pesquisadora. A ideia não avançou pela pressão dos governadores, contrários a reduzir o ICMS, a principal fonte de arrecadação das administrações estaduais. As alíquotas de ICMS são particularmente altas em serviços essenciais: luz elétrica e telecomunicações.
O ISS também tem ganho importância nos orçamentos municipais, em mais um movimento de aumento da desigualdade, ao encarecer tarifas de ônibus, cabeleireiros e oficinas mecânicas. Enquanto isso, o IPTU, o imposto sobre propriedades urbanas que pode ter alíquotas diferenciadas por faixa de renda, perdeu participação na arrecadação. Em 93% das cidades, o valor recolhido com o imposto fica abaixo do IPVA, cobrado dos veículos. Pior: segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, as falhas no sistema de avaliação do valor do imóvel tornaram o IPTU regressivo, ou seja, proprietários de imóveis mais caros pagam proporcionalmente menos imposto. "O IPTU é um imposto mais justo, mas tem uma alta rejeição por falta de conhecimento de quem paga, de quem não paga e, principalmente, por não haver transparência dos governos em relação à aplicação dos recursos", diz Afonso.
São Paulo é o principal campo dessa guerra. O prefeito petista Fernando Haddad foi proibido pela Justiça de aumentar o IPTU. Antes da interferência do Judiciário, Haddad havia, porém, perdido a batalha da comunicação: até aqueles que desembolsariam menos e os isentos da taxa se declararam contra as mudanças na cobrança.
O caso brasileiro de tributar pouco a propriedade é peculiar, afirma Afonso. "Nos EUA, existe um sistema de educação vinculado ao pagamento do IPTU e é comum uma família escolher morarem um distrito por conta da escola pública. E o tipo de lição para a qual o Brasil deveria olhar."
Na mesma linha, o País quase não arrecada de propriedades rurais. A arrecadação do ITR corresponde a 0,01% do PI B e, provavelmente, mal cobre os custos de seu lançamento. A falha, diz o economista Ladislau Dowbor, estimula a concentração e a improdutividade. "Não temos retorno dos grandes investimentos em terra. E possível ficar sem produzir, pois ela não custa ao proprietário."
O imposto sobre herança também é irrisório. Em meio a tantos discursos infiados em defesa da meritocracia, o Brasil permite a herdeiros usufruir, sem a necessidade de algum esforço próprio, com as riquezas construídas pelos pais. Nos Estados Unidos, a doação de fortunas para fundações é estimulada pelo fato de a transferência da herança ser tributada em até 50%. No Brasil, a alíquota mais alta é de 8%. "Claro que existe uma margem de isenção, mas ninguém acusa os Estados Unidos de serem contra a propriedade por tributar dessa forma", diz Claudio Hamilton dos Santos, diretor do Ipea.
A tributação sobre a renda representa apenas 19% da carga brasileira. O Sindifisco encabeça uma campanha pelo reajuste da tabela do IR, cuja defasagem é de 66% e leva os salários mais baixos a pagarem cada vez mais. Outros grupos defendem a inclusão de alíquotas maiores para chegar a patamares mais elevados de ganhos, além da taxação de grandes fortunas. Mas a pouca representatividade do IR no total da carga, avalia Zockun, em nada seria afetado se mantidas as permissões para descontos. "A tributação direta acaba pequena para qualquer nível de renda, pois as deduções fazem com que a tributação efetiva seja muito menor."
Para alcançar as camadas mais altas de renda, explica Afonso, o foco precisa sair do imposto sobre pessoa física e ir para a jurídica, onde existe uma alíquota geral de 15%. Como forma de reduzir o custo do trabalho, o Brasil estimulou certas categorias profissionais e funcionários de altos salários das empresas a se tornarem "empresas". Por extensão, permitiu-se a muitos deles ingressar no Simples, um sistema de recolhimento que reduz o porcentual de pagamento. "O aumento das alíquotas sobre pessoas físicas vai atingir apenas o funcionalismo público, não os profissionais liberais, jogadores de futebol, artistas." E por que é tão difícil mudar? "Sabemos onde mexer, mas o financiamento da política por parte de quem quer manter o sistema como está trava a discussão", diz Dowbor.
Sem grandes esforços para mexer nos impostos, a distribuição de renda recente foi obtida, segundo o Ipea, a partir do aumento dos gastos sociais, a exemplo do Bolsa Família. "O governo federal conseguiu efeitos distributivos por meio dos gastos, não dos tributos. Há o risco de o discurso anti-imposto se voltar contra os ganhos dos investimentos, o que representaria um dano ainda maior", diz Fernando Gaiger, pesquisador do instituto.
Além de ser o grupo que deixa a maior parte dos seus rendimentos com o Leão, a população de baixa renda é aquela que tem mais a perder na hipótese de redução dos impostos. Segundo o Ipea, em uma carga tributária de 36% do PIB, 15 pontos porcentuais são redistribuídos à população por meio de serviços públicos. "Se quisermos uma educação melhor, vamos precisar de mais professores, e a verdade é que ainda faltam recursos para investir. Os serviços são mais baratos quando coletivos, mas, se a elite consegue fazer seu mundo à parte, ela não se preocupa com isso", diz Dowbor.

Há um claro limite para a expansão dos efeitos de distribuição de renda via aumento de gastos. Se quiser um dia se tornar um país mais justo, o Brasil terá de inverter a lógica: cobrar de quem, de fato, pode custear o esforço rumo à civilização. Seria uma revolução.


Reportagem retirada na Revista Carta Capital, na edição 786, da semana do dia 10/02/2014, disponível no Acervo da Escola.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Debates – "Os justiceiros"

Ataques de ‘justiceiros’ viram rotina no Rio (Reportagem)

Do O Dia – 10/02/2014

Rio - A onda de ataques a supostos criminosos e moradores de rua em diversos bairros do Rio — boa parte deles, menores de idade — por parte de grupos que se autointitulam ‘justiceiros’ vem se tornando rotina. A sede de ‘fazer justiça com as próprias mãos’ preocupa autoridades, amplia a polêmica sobre o assunto nas redes sociais e causa repercussão no exterior.
Um caso no Aterro do Flamengo sexta-feira levantou a discussão: um adolescente de 15 anos foi torturado e preso nu a um poste, com tranca de bicicleta no pescoço. No início da noite de ontem, em depoimento na 9ª DP (Catete), o menor, que tem três passagens pela polícia, revelou ter sido agredido por cerca de 30 homens, um deles armado com pistola.
No início da tarde de ontem, em Copacabana, um adolescente de 17 anos, que tentou roubar cordão de uma mulher, foi perseguido e detido por comerciantes. Segundo o jovem, ele teria sido agredido e teve os pés amarrados com barbantes. No dia 27, um homem roubou o celular de uma mulher na saída do Túnel Martin de Sá, na Rua do Riachuelo, no Centro, em frente a uma cabine da PM que, segundo testemunhas, estava vazia.
“A vítima gritou por socorro e, em poucos minutos, pelo menos 20 pessoas cercaram o acusado, o imobilizaram e o agrediram. Em seguida, dois PMs chegaram e o conduziram algemado para a 5ª DP (Mem de Sá)”, detalhou o presidente da Associação de Moradores da região, Moisés Muniz, que filmou e fotografou a cena.
Na filmagem, postada no Youtube, é possível perceber a ira dos moradores. “Deixa ele aqui, doutor”, grita um homem, em meio a xingamentos, enquanto os policiais conduzem o suspeito, assustado, à viatura. “Ele já é conhecido da área, integrante da Gangue da Bicicleta. Sabe como é: não tinha polícia na área, então o povo teve que agir”, justificou Moisés. A tese, aliás, é compartilhada por defensores dos ‘justiceiros’ nas redes sociais.

No Centro, ação é muito comum entre populares
O delegado da 5ª DP (Mem de Sá), Alcides Pereira, disse ‘ser comum’ suspeitos serem detidos por outras pessoas no Centro e depois conduzidos pela PM à delegacia. “A recomendação é que a polícia seja sempre acionada, obviamente, sem o suspeito ser agredido”.
Assim como sociólogos, o padre Renato Chiera, que acolhe menores infratores, condena os ‘justiceiros’. “Querem combater de maneira covarde as consequências, e não as causas do caos social”, opinou. Em nota, a PM informou que, no caso do homem preso na Rua do Riachuelo, a cabine da corporação estava vazia, porque policiais foram “acionados para ocorrências”.

Menor conta que foi agredido a chutes e teve os pés amarrados
O menor detido por comerciantes ontem contou, na 13ª DP (Copacabana), que antes de a PM chegar, foi agredido a chutes e, em seguida, teve os pés amarrados. Segundo testemunhas, ele foi pego na Rua Leopoldo Miguez. “Me chutaram e amarraram meus pés com barbantes, mas consegui me soltar. A sorte é que a polícia chegou a tempo”, contou o adolescente, que responderá por furto.
Segundo a polícia, ele estaria com outro jovem, que acabou fugindo com o cordão roubado. “Deram um ‘sacode’ nele antes de a PM chegar. Todo dia tem esse tipo de ação de criminosos aqui. Ninguém aguenta mais isso”, disse um segurança que trabalha na região e preferiu não se identificar.
Na madrugada de sábado, mais um caso de violência semelhante: dois rapazes — um deles menor de idade — foram espancados na Penha, depois de terem roubado celulares de outros dois jovens na Rua Quito. Luiz Felipe Rodrigues da Silva, 23, e seu comparsa adolescente precisaram ser atendidos no Hospital Souza Aguiar, antes de ser conduzidos à 22ª DP (Penha).
O instinto de vingança de parte da população foi destacado na terça-feira pelo tabloide britânico 'Daily Mail', que publicou a foto do adolescente agredido no Flamengo com o título: “Vigilantes brasileiros pegam 'ladrão'”. Na reportagem, são citadas as discussões contra e a favor dos ‘justiceiros’ na internet.

Artista diz sofrer ameaças por ajudar jovem
A artista plástica Yvonne Bezerra de Melo disse ontem, ao entrar na 9ª DP (Catete) para depor sobre o caso do menor amarrado ao poste, que está sendo ameaçada de morte. “Estou sendo xingada porque ajudei uma pessoa que eu nem conhecia. Estou sendo acusada de estar defendendo bandidos. Estou de saco cheio dessa sociedade. P* que pariu”.
Mas, segundo a delegada-titular da 9ª DP, Monique Vidal, Yvonne não relatou as ameaças em depoimento. Na delegacia, disse apenas que foi chamada por um vizinho para socorrer o adolescente e afirmou que não procurou a polícia porque o Corpo de Bombeiros logo o levou para o Hospital Souza Aguiar, no Centro.
Segundo a policial, o depoimento não foi esclarecedor. “Ela disse que PMs também estavam no local em que o rapaz foi achado”, contou Monique Vidal. Ela investiga a ação de um grupo de jovens de classe média, que se denomina Os Justiceiros, que seriam os agressores. A delegada já pediu imagens de câmeras da região.
Monique investiga também se os 14 jovens detidos pela PM no Aterro do Flamengo na segunda-feira fazem parte da gangue. Um deles, Lucas Felício, admitiu na 9ª DP que tem agido em grupo na caça a supostos infratores, mas disse que não está envolvido na agressão ao menor.
Ontem, ele retirou do ar sua página no Facebook . “Porrada na vagabundagem mesmo”, comentava, entre outras declarações.

Grupo estava em academia e chegou em motos
Após ser torturado e amarrado a um poste pelo pescoço com uma trava de bicicleta a um poste no Flamengo, o adolescente E., de 15 anos, buscou refúgio num ambiente que se tornou familiar para ele: um abrigo municipal. Filho de um traficante morto quando ele era um bebê e proibido por quadrilha de milicianos de voltar à casa da mãe por furtar uma furadeira, em Campo Grande, na Zona Oeste, ele virou figurinha carimbada no abrigo. Só nos últimos três meses, procurou o local em busca de uma cama para dormir em cinco ocasiões.
A última foi no sábado. E., mesmo depois de ter sido torturado, não fez alarde. Só foi reconhecido ontem por uma diretora. Então, repetiu aos funcionários do abrigo a mesma versão que contaria ontem à noite na 9ª DP (Catete). Ele disse que estava com três amigos por volta das 2h30, a caminho de Copacabana, quando foi abordado por 30 homens. Eles estavam com as motos junto ao meio-fio e faziam musculação numa academia na Enseada de Botafogo.
Ele e outro amigo não fugiram porque foram ameaçados por uma pistola 9 milímetros — uma ‘nove nariguda’, como descreveu na delegacia. Em meio às agressões, o amigo dele escapou. E, antes de ser preso, disse ter ouvido: “Você vai pagar pelos que fugiram!”

Nenhum dos acusados foi identificado pela vítima
Nenhum dos 14 jovens detidos na segunda-feira, sob a suspeita de integrar um grupo de ‘justiceiros’, foi identificado pelo adolescente em depoimento. Eles foram pegos enquanto dois rapazes pediam socorro. Sem antecedentes criminais, eles serão investigados por formação de quadrilha e por corrupção de menores.
Enquanto isso, a delegada Monique Vidal busca vítimas do adolescente agredido, que é menor infrator e tem passagem pela polícia por roubo, furto e lesão corporal. “Investigar roubo a pedestre é complicado, porque é uma população flutuante. Se houvesse o policiamento ostensivo facilitaria nossa vida”, disse.



-----------------------x-x-x----------------------

SBT Brasil (Comentário)


-----------------------x-x-x----------------------
Ordem ou barbárie? (Artigo de Opinião)

Da Folha – 11/02/2014

O fenômeno da violência é tão antigo quanto o ser humano. Desde sua criação (ou surgimento, dependendo do ponto de vista), o homem sempre esteve dividido entre razão e instinto, paz e guerra, bem e mal.
Há quem tente explicar a violência, a opção pela criminalidade, como consequência da pobreza, da falta de oportunidades: o homem fruto de seu meio. Sem poder fazer as próprias escolhas, destituído de livre-arbítrio, o indivíduo seria condenado por sua origem humilde à condição de bandido. Mas acaso a virtude é monopólio de ricos e remediados? Creio que não.
Na propaganda institucional, a pobreza no Brasil diminuiu, o poder de compra está em alta, o desemprego praticamente desapareceu... Mas, se a violência tem relação direta com a pobreza, como explicar que a criminalidade tenha crescido em igual ou maior proporção que a renda do brasileiro? Criminalidade e pobreza não andam necessariamente de mãos dadas.
Na semana passada, a violência (ou a falta de segurança) voltou ao centro dos debates. O flagrante de um jovem criminoso nu, preso a um poste por um grupo de justiceiros deu início a um turbilhão de comentários polêmicos. Em meu espaço de opinião no jornal "SBT Brasil", afirmei compreender (e não aceitar, que fique bem claro!) a atitude desesperada dos justiceiros do Rio.
Embora não respalde a violência, a legislação brasileira autoriza qualquer cidadão a prender outro em flagrante delito. Trata-se do artigo 301 do Código de Processo Penal. Além disso, o Direito ratifica a legítima defesa no artigo 23 do Código Penal.
Não é de hoje que o cidadão se sente desassistido pelo Estado e vulnerável à ação de bandidos. Sobra dinheiro para Cuba, para a Copa, mas faltam recursos para a saúde, a educação e, principalmente, para a segurança. Nos últimos anos, disparou o número de homicídios, roubos, sequestros, estupros... Estamos entre os 20 países mais violentos do planeta. E, apesar das estatísticas, em matéria de ações de segurança pública, estamos praticamente inertes e, pior: na contramão do bom senso!
Depois de desarmar os cidadãos (contrariando o plebiscito do desarmamento) e deixá-los à mercê dos criminosos, a nova estratégia do governo, por meio do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, é neutralizar a polícia, abolindo os autos de resistência.
Na prática, o policial terá que responder criminalmente por toda morte ocorrida em confronto com bandidos. Em outras palavras, é desestimular qualquer reação contra o crime. Ou será que a polícia ousará enfrentar o poder de fogo do PCC (Primeiro Comando da Capital) ou do CV (Comando Vermelho) munida apenas de apitos e cassetetes?
Outra aliada da violência nossa de cada dia é a legislação penal: filha do "coitadismo" e mãe permissiva para toda sorte de criminosos. Presos em flagrante ou criminosos confessos saem da delegacia pela porta da frente e respondem em liberdade até a última instância.

No Brasil de valores esquizofrênicos, pode-se matar um cidadão e sair impune. Mas a lei não perdoa quem destrói um ninho de papagaio. É cadeia na certa!
O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), o Estatuto da Impunidade, está sempre à serviço do menor infrator, que também encontra guarida nas asas dos direitos humanos e suas legiões de ONGs piedosas. No Brasil às avessas, o bandido é sempre vítima da sociedade. E nós não passamos de cruéis algozes desses infelizes.
Quando falta sensatez ao Estado é que ganham força outros paradoxos. Como jovens acuados pela violência que tomam para si o papel da polícia e o dever da Justiça. Um péssimo sinal de descontrole social. É na ausência de ordem que a barbárie se torna lei.

RACHEL SHEHERAZADE, 40, jornalista pela Universidade Federal da Paraíba, é âncora do telejornal "SBT Brasil"


-----------------------x-x-x----------------------
A subsombra desumana de Raquel Sheherazade (Artigo de opinião)

Da Carta Capital – 06/02/2014

"A mais triste nação, na época mais podre, compõe-se de possíveis grupos de linchadores".

Esta frase é, na verdade, um verso de Caetano Veloso, que, no início na década de 1990, indignado com uma onda de linchamentos no Brasil ainda subdesenvolvido, escreveu a canção "O cu do mundo". Recorrendo ao fato linguístico de que palavra "cu" poder ser classificada como adjetivo ou substantivo comum, Veloso canta que o Brasil , "cu do mundo" (periferia das potências e dos centros de decisão da política internacional), seria, pela frequência com que linchamentos acontecem por esse sítio, um "cu" (no pior sentido desse "adjetivo esdrúxulo": sujo, fedido, péssimo, insuportável).
O linchamento é - imagino que todos saibam disso - a violência dura (espancamentos e assassinatos) perpetrada por um grupo de pessoas como punição contra um indivíduo acusado de ter praticado algum delito, mas sem o devido processo judicial e em detrimento dos direitos fundamentais de toda pessoa humana garantidos pelas leis.
Há uma controvérsia sobre a origem da palavra "linchamento". Alguns autores a atribuem ao coronel Charles Lynch, que fazia "justiça com as próprias mãos" durante a guerra de independência dos Estados Unidos. Outros, porém, defendem que a palavra é derivada do fato de o capitão William Lynch, do estado da Virgínia, ter mantido, por volta de 1780, um grupo de pessoas que, à margem da lei, punia com morte violenta os inimigos.
Em ambos os casos, a violência praticada pelo grupo contra os delinquentes reais ou supostos estava eivada de ódio racial contra os índios e os negros. Aliás, esses grupos foram o embrião da Ku Klux Klan.
Duas décadas depois daquele desabafo em forma de canção feito por Caetano Veloso, a "subsombra desumana dos linchadores" a que ele se refere volta a escurecer o céu de nosso frágil estado democrático de direito.
Em Goiânia, moradores de rua são exterminados com requintes crueldade por "justiceiros" anônimos "cansados" dos pequenos delitos ou simplesmente da feiura que os sem-teto trazem à paisagem urbana (anônimos porque não há, por parte das polícias locais, boa vontade de empreender uma investigação rigorosa e eficaz que os identifique e possibilite que sejam punidos na forma da lei).
Na capital paulista, além dos moradores de rua, principalmente aqueles entregues ao abuso do crack, são vítimas de "justiceiros" também homossexuais e travestis, abatidos por espancamentos e/ou assassinatos cada vez mais violentos.
No Rio de Janeiro, capital, homeless pardos, malandros pretos, ladrões mulatos e outros cidadãos quase pretos considerados "suspeitos" por causa da cor da pele e/ou do jeito que se vestem que costumam frequentar o Aterro do Flamengo foram alvos de uma reação violenta de "justiceiros" locais, que, para mostrar o quanto desdenham das garantias jurídicas e o quanto se consideram acima das leis, ataram a um poste, com uma trava de bicicleta, um dos malandros pretos espancados (um adolescente despido de sua roupa e dignidade).
A reação clara e inequivocamente criminosa dos "justiceiros" e linchadores cariocas à presença da população marginal no parque que consideram seu ganhou, de imediato, o aval e o estímulo (sim, estímulo!) da jornalista Raquel Sheherazade, âncora do Jornal do SBT, emissora que ocupa o segundo lugar em audiência.
Sheherazade não só defendeu abertamente o linchamento do menor como afirmou que as pessoas "de bem" não têm outra resposta para o "estado de violência" que não a "justiça com as próprias mãos" (claro que ela estava se referindo apenas aos delitos praticados pelos pobres e negros, já que defendeu e justificou a delinquência do astro pop Justin Bieber), desprezando o - e debochando do - papel das polícias, do Ministério Público, do poder judiciário e dos defensores dos Direitos Humanos na mediação dos conflitos em sociedade.
Acontece que, sendo o linchamento ou justiça por conta própria crimes previstos no nosso código penal, a apologia e o estímulo a estes crimes também constituem um crime! E aí?
Embora o nome de Raquel Sheherazade circulasse por textos de ativistas indignados com suas opiniões tão medíocres quanto reacionárias, eu, até então, não tinha dado muita atenção a ela; nem mesmo quando me citou de maneira negativa em sua fervorosa defesa da permanência do deputado pastor Marco Feliciano na presidência da CDHM da Câmara, apesar das acusações de racismo e homofobia que pesavam sobre ele.
Para mim, até então, Sheherazade não passava de uma mulher cafona, fundamentalista religiosa, limitada intelectualmente e de repertório cultural estreito - uma espécie de Afanásio Jazadji de tailleur - que caiu nas graças de Sílvio Santos. Não tinha, portanto, motivos para lhe dar atenção. Agora, porém, depois de sua apologia ao linchamento e da boa recepção que esta teve nas redes sociais, não posso mais ignorá-la: preciso enfrentá-la!
O elogio de Sheherazade e seus simpatizantes aos "justiceiros" do Aterro do Flamengo materializa a velha tendência de se buscar, no que diz respeito à segurança pública, "soluções biográficas para contradições sistêmicas", como diz o sociólogo alemão Ulrich Beck. Isso quer dizer que a jornalista e sua gente pertencem à tradição que trata a delinquência fruto das históricas desigualdade e injustiça sociais com métodos de tortura ou execução sumária dos delinquentes, ignorando o sistema que os produzem.
Se nos encontramos num "estado de violência", como ela diz, é também porque seu discurso e o de boa parte da mídia associam pobreza e negritude à criminalidade, desumanizando as populações das periferias e as expulsando da comunidade moral.
Em sua visão de mundo estreita e sustentada em preconceitos, Sheherazade e os que lhe aplaudem, consideram a defesa dos Direitos Humanos dos pobres e dos marginais um estorvo para a segurança do "cidadão de bem". Ora, isso não passa de estupidez!
Esses direitos, em sua formulação consagrada internacionalmente, são de todos e todas e não apenas de Raquel Sheherazade e sua turma. Os direitos à vida e à integridade física, bem como o direito à defesa num julgamento justo, não podem ser entendidos como privilégios de gente branca que mora em bairros privilegiados e tem renda para o consumismo - que é como Sheherazade os entendem. Esses direitos são também daquele adolescente espancado e atado a um poste por uma trava de bicicleta! Como a jornalista cafona se sentiria se um grupo de pessoas, fazendo "justiça com as próprias mãos", decide linchá-la por sua apologia ao linchamento? Sheherazade deveria refletir sobre essa pergunta antes de estimular a barbárie mais uma vez.
Desacreditar o Estado Democrático de Direito em cadeia nacional para defender linchamento de um adolescente negro, pobre e supostamente delinquente é apodrecer nossa época; é fazer, do Brasil, o cu do mundo!

Jean Wyllys é jornalista e linguista, deputado federal pelo PSOL-RJ e integrante da frente parlamentar em defesa dos direitos LGBT.

http://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-subsombra-desumana-de-raquel-sheherazade-8276.html

-----------------------x-x-x----------------------
A volta do Pelourinho (Artigo de opinião)

Da Folha – 11/02/2014

A foto de um adolescente negro, deixado nu, sangrando após golpes de capacete e amarrado a um poste por uma trava de bicicleta correu o mundo. Ressuscitou-se o Pelourinho 125 anos após "o fim da escravidão", para regozijo de quem sempre está pronto para empinar o chicote e fazer justiça com as próprias mãos. Como se essa violência não gerasse mais violência e insegurança, em nome da segurança. Querem substituir o Estado pela barbárie.
Diante da gravidade do fato, em vez de negar a barbárie, a jornalista Rachel Sheherazade, no jornal do SBT, em horário nobre, não só achou justificável a ação dos 30 justiceiros, como estimulou a atitude do que ela chamou de "vingadores". Ou seja, milícias, gangues e bandos que operam à margem da lei.
O que é isso senão apologia ao crime, à tortura, ao linchamento, ao justiçamento? Em seu editorial, em busca de audiência e navegando no senso comum e no desespero da população com a violência, a âncora conseguiu violar a Constituição, o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), todas as convenções de defesa dos direitos humanos, o código de ética dos jornalistas brasileiros, o Código Penal e o Código Brasileiro de Telecomunicações e ainda debochou: quem se apiedou do "marginalzinho" que adote um "bandido".
Por isso representamos a jornalista e o SBT junto ao Ministério Público Federal e Estadual (SP). O SBT afirmou que não se responsabiliza pelas declarações de seus âncoras, já de olho nas consequências legais. A jornalista afirmou que as críticas representavam censura. Refugiam-se covardemente na liberdade de imprensa e de opinião, mas sabem que as leis não amparam apologia ao crime, à tortura e ao linchamento.
Por outro lado, o SBT sabe que rádio e TV operam por meio de outorgas concedidas pelo Ministério das Comunicações e aval do Congresso Nacional. Não é mera propriedade privada, como querem que acreditemos. A emissora tem sim responsabilidade sobre o que apresenta e o Ministério das Comunicações e o Congresso Nacional não podem se omitir em exercer sua prerrogativa de fiscalizar as concessionárias.
Na Alemanha de Hitler, muito antes da guerra, os nazistas formaram grupos paramilitares, milícias aterrorizadoras (os Freikorps) que massacravam "inimigos" (judeus, comunistas, minorias), detonaram o monopólio da força pelo Estado e levaram o ditador ao poder. E deu no que deu. Aqui, o inimigo dos Freikorps do bairro do Flamengo são os jovens, negros e pobres, infratores ou não. Negam o Estado democrático de Direito e pretendem, com a criação de força paralela, com tortura e eliminação física, enfrentar a delinquência esquecendo o sistema que a gera. As históricas desigualdades e injustiças não podem ser resolvidas pela barbárie, mas pelo acolhimento do Estado.
Defendemos a total liberdade de opinião. Mas, é um retrocesso entender que incitação ao crime está resguardada pela liberdade de expressão. O compromisso constitucional brasileiro é com a construção de uma sociedade fraterna, justa e solidária. Nosso país não precisa de milícias ou grupos de extermínio. O que precisamos é de mais educação, política social, segurança pública, distribuição de renda e igualdade de direitos. Única maneira de se conseguir a paz.

IVAN VALENTE, 67, é deputado federal por São Paulo e líder da bancada do PSOL na Câmara

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Debates – Legalização da maconha

Lobby do tabaco na Justiça é nefasto e atrasa o país (Entrevista)

Da Folha – 07/02/2014

A partir de junho, uma brasileira terá a tarefa de organizar as discussões e práticas mundiais relacionadas às políticas antitabagistas.
A carioca Vera Luiza da Costa e Silva, 62, estará à frente do secretariado da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, tratado internacional negociado sob patrocínio da OMS (Organização Mundial da Saúde) em vigor desde 2005. Nos próximos quatro anos, ela trabalhará na sede da OMS em Genebra.
Coordenadora do Centro de Estudos sobre Tabaco e Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública (Fiocruz), Silva critica o que vê como "lobby nefasto" da indústria do tabaco no Judiciário, que conseguiu suspender o veto da Anvisa aos aditivos de sabor.
Ela defende que o Brasil se articule para barrar o comércio ilícito de cigarros e, para isso, vê como fundamental o engajamento do novo ministro da Saúde, Arthur Chioro.

Folha - Como a sra. avalia a atuação do Brasil no combate ao tabagismo?
Vera Luiza da Costa e Silva - Tem avançado muito no controle do tabagismo. O país não se furtou a fazer o que precisava, mas algumas áreas estão um pouco lentas.
Uma é a regulação da lei [federal] de 2011 que cria ambientes livres de fumo e encaminha a proibição da publicidade nos pontos de venda.
Outra é a definição do papel regulatório da Anvisa na área do tabaco, que vem sendo questionado. É preciso que haja uma mensagem clara do Judiciário de que a Anvisa pode e deve regular todos os produtos legais de consumo que afetam a saúde do brasileiro.
Uma terceira é a interferência da indústria do tabaco sobre as políticas governamentais. A indústria possui lobistas para impedir que regulações mais restritas passem, e vem tentando corromper o Judiciário para impedir que a proibição dos aditivos [estabelecida pela Anvisa em 2012] entre em vigor. E ela precisa entrar. É pelas nossas crianças que temos que fazer isso.
Esse lobby da indústria é nefasto e coloca o país para trás. Ele torna o Brasil cada vez mais subdesenvolvido.

Há chances de o país avançar nas políticas em ano eleitoral?
Ainda há tempo hábil para que essa regulação [dos ambientes livres de fumo] seja assinada [pelo governo federal]. Até onde eu sei, essa regulamentação já está pronta. É uma questão de se dar prioridade a isso. A Anvisa apoiou, no final do ano, a adoção das embalagens genéricas do cigarro, mas qual é a chance de uma medida polêmica como essa prosperar?

Como classificar as políticas antitabagistas brasileiras no contexto internacional?
Apesar da pressão da indústria no Brasil, continuamos na vanguarda. Temos desafios: o comércio ilícito do tabaco, ajustar o tratamento dos fumantes e não se deixar influenciar pelo lobby da indústria, que usa grupos de fachada. Ela tem usado plantadores de fumo, como se [adotar medidas restritivas ao tabaco] fosse influenciar a política econômica, diminuindo a demanda pelo produto e a oferta de trabalho. Não é verdade: a maior parte do fumo brasileiro é exportado.
O governo tem que estimular as políticas de diversificação e substituição das culturas. Isso é um grande passo.

Qual é o peso do comércio ilícito? E como o protocolo sobre o tema, adotado na Convenção-Quadro, pode ajudar?
O comércio ilícito é um problema que transcende fronteiras. O Brasil é o maior exportador de fumo em folha do mundo e exporta para países vizinhos, que têm, na divisa com o Brasil, fábricas que manufaturam os cigarros, que voltam ilegalmente para o Brasil, estimulando o consumo pelo preço mais baixo e aumentando a criminalidade.
Não vai haver solução sem que o país se articule com Uruguai, Paraguai, Argentina e Bolívia. A tônica do protocolo de comércio ilícito [adotado no âmbito da Convenção-Quadro, mas que precisa ser ratificado por 40 países para entrar em vigor] está na cooperação internacional.
É muito importante que esse protocolo entre em vigor o quanto antes para que se criem sistemas de monitoramento do caminho desses produtos de tabaco. É nisso que está a necessidade de o Brasil manifestar seu apoio ao tratado e ratificar o tratado.
O novo ministro da Saúde [Arthur Chioro] tem de incentivar esse tipo de processo. Se a Saúde não fizer pressão, outros setores dificilmente vão ser convencidos a fazer isso.


 -----------------------x-x-x----------------------
A ousadia de Mujica (Reportagem)


Da Carta Capital – 01/01/2014

Em um episódio de 1995 do desenho animado Os Simpsons, Homer, o patriarca da família e símbolo da classe média americana, localiza, em um globo terrestre, o pequeno Uruguai, ao sul da América do Sul, e erra a pronúncia do país: “You Are Gay”. Quase duas décadas mais tarde e após três anos de um governo de esquerda, o ex-guerrilheiro tupamaro José “Pepe” Mujica deu a nosso vizinho de 3,4 milhões de habitantes tanto destaque no mapa que até Homer, sinônimo no Brasil do telespectador médio do Jornal Nacional da Rede Globo, seria hoje capaz de reconhecê-lo.
Mujica é, segundo definições mundo afora, “o político mais incrível”, “o líder que faz sonhar”, “o presidente mais pobre do planeta”, que abriu mão de 90% do salário e preferiu morar em sua chácara em vez de na residência oficial. A revista americana Foreign Policy o listou entre os cem pensadores mais importantes de 2013, por redefinir o papel da esquerda no mundo.
“Quando o presidente venezuelano Hugo Chávez morreu, em março, muitos acharam que o crescente movimento de esquerda latino-americana morreria com esse populismo de camisas vermelhas. Poucos meses depois, entretanto, o movimento encontrou um novo e pouco provável guia em José Mujica, presidente do Uruguai”, anota a publicação. “A controversa agenda de Mujica, que o fez ganhar tanto amigos quanto detratores, gerou um novo debate sobre o futuro da esquerda latino-americana. Ao estabelecer uma ruptura entre o claro antiamericanismo de Chávez e também com o profundo conservadorismo social da América Latina, Mujica aponta para um possível caminho futuro para seus camaradas.”
Pepe despertou uma verdadeira Mujicamania até mesmo entre quem tenta esquecer seu passado de guerrilheiro que sequestrou e assaltou bancos durante a ditadura uruguaia e que passou 10 de seus 14 anos de prisão na solitária, edulcoração semelhante à produzida pela mídia mundial em relação a Nelson Mandela (a propósito, ler a análise de Antonio Luiz Coelho da Costa a partir da página 54).
Mujica não dá, porém, sinais de pretender interromper os seus projetos “revolucionários”, em nome da conciliação ou da governabilidade. Na campanha presidencial, nunca amenizou o discurso para conquistar ou acalmar o eleitorado conservador. “Se chego a segurar o manche, vou expor minhas ideias. Vou propô-las e, se não aceitarem, que me apresentem outro projeto”, disse, em longa entrevista ao veterano jornalista uruguaio Samuel Blixen no livro El Sueño de Pepe. “Nós, os esquerdistas, vivemos tempo demais prisioneiros de um marxismo mecanicista, que não é culpa do velho Marx, mas do que veio depois.”
Postas em prática, as ideias surpreendem o mundo pelo viés progressista. Enquanto, no Brasil, religiosos chantageiam e encurralam o governo, na terra de Mujica, só neste ano, foram legalizados o aborto até o terceiro mês e o casamento gay. Para culminar, a legalização da maconha, aprovada pelo Senado por 16 votos a favor e 13 contra na terça-feira 10 e que agora vai à sanção do presidente, é uma experiência única. O Estado controlará a produção e a comercialização em farmácias a 1 dólar o grama. Os usuários poderão cultivar até três pés da planta em suas próprias casas e organizar cooperativas de consumo.
O objetivo é acabar com o tráfico da erva no Uruguai e reduzir a criminalidade. Segundo o presidente, a maconha não será legalizada, mas regulada, em substituição a um mercado à margem das regras. A oposição criticou a transformação do país em um “laboratório” e ameaçava recorrer a um referendo para derrubar o projeto. Rival de Mujica em 2009, o ex-presidente Luis Alberto Lacalle ironizou e sugeriu a criação de uma “Petrobras da erva”.
A Junta Internacional de Fiscalização de Estupefacientes, órgão das Nações Unidas responsável por supervisionar o cumprimento de convenções sobre drogas, condenou a decisão e afirmou que a lei viola os tratados internacionais assinados pelo Uruguai. Em nota, Raymond Yans, presidente da entidade, declarou “surpresa” com a aprovação e se reportou a uma convenção de 52 anos atrás. “O objetivo principal da Convenção Única de 1961 é proteger a saúde e o bem-estar da humanidade. A Cannabis está submetida a controle por esta convenção, que exige dos Estados signatários limitar seu uso a fins médicos e científicos, devido a seu potencial para causar dependência.”
Um documento interno da ONU, divulgado pelo jornal britânico The Guardian no começo de dezembro, revela, porém, uma insatisfação crescente dos países que assinaram a convenção. A Noruega e o México criticam os maus resultados da guerra às drogas e da proibição. Para a Suíça, a repressão tende a afastar os consumidores dos serviços de saúde pública que previnem as doenças transmissíveis pelo sangue. O Equador solicitou “esforços especiais” no sentido de reduzir a demanda.
Diante das críticas, Mujica ressaltou o caráter inovador da legislação e manteve-se firme. “Vamos ter dificuldades? Certamente, mas a quantidade de mortos por ajustes de contas por causas vinculadas ao narcotráfico representa uma dificuldade muito maior”, disse, em entrevista ao uruguaio La República. “Iniciamos um caminho para combater o vício por meio da educação e identificando os que consomem e tendem a se desviar do caminho. Einstein dizia que não há maior absurdo que pretender mudar os resultados repetindo sempre a mesma fórmula. Por isso queremos experimentar outros métodos.”
Tanto o líder uruguaio quanto sua mulher, a também ex-tupamara e senadora pela Frente Ampla Lucía Topolansky, confessaram ter pouco ou zero conhecimento sobre a maconha até assumirem o projeto pela legalização. “Nós dois, como temos certa idade (ela, 69, ele, 78), éramos perfeitos ignorantes no assunto. Éramos. Agora não”, disse Topolansky, cotada para o posto de vice na chapa do provável candidato à sucessão de Mujica, o ex-presidente Tabaré Vázquez.
Quando a notícia sobre a legalização apareceu nas agências internacionais, surgiram as primeiras reações contrárias na vizinhança. No Peru, especialistas temiam que a liberação aumentasse a produção de drogas no país de Ollanta Humala. Segundo levantamentos de especialistas, a maconha a ser produzida pelo sistema estatal uruguaio não daria para cobrir nem a metade da demanda de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. “O Uruguai, minúsculo em população, pode funcionar como um ‘país-laboratório’ perfeito. O potencial impacto negativo para os países vizinhos, se vier a acontecer, deverá ter proporções muito pequenas”, opina o psiquiatra Luís Fernando Tófoli, professor da Unicamp. “Ao se colocar em perspectiva o tamanho do passo dado na direção de poupar as vidas perdidas na guerra contra o tráfico, é um risco que vale a pena ser corrido.”
Houve quem recebesse a brisa vinda do Sul com franco entusiasmo. O ministro das Relações Exteriores, Luis Almagro, contou que as embaixadas uruguaias têm recebido consultas de estrangeiros interessados em fixar residência no país onde a maconha é livre, mas esclareceu: não será permitido o “turismo da Cannabis” nos moldes da Holanda. E o potencial econômico da produção e comercialização começa a atrair as atenções de centenas de produtores agrícolas e investidores estrangeiros, segundo o jornal uruguaio El Observador.
Para o ex-presidente mexicano Vicente Fox, hoje um ativista e futuro investidor da maconha liberada, a legalização foi um “dia de festa”. “Parece-me que o Uruguai vai ganhar uma grande reputação. A medida é correta, vai evitar ser um território com violência e narcotráfico como no México. É uma decisão muito vanguardista.” Em maio, o ex-presidente se associou ao ex-executivo da Microsoft Jamen Shively, que registrou a primeira marca de maconha, a Diego Pellicer, em homenagem a um antepassado de Shively.
Até o momento, a dupla conseguiu reunir os 10 milhões de dólares necessários para investir em uma casa de distribuição de Cannabis no estado de Washington, um dos dois estados americanos onde é permitida a venda de maconha para uso recreativo. O outro é o Colorado. Em 18 estados, o uso medicinal é permitido. Presume-se que apenas nos EUA o negócio da maconha poderá movimentar 20 bilhões de dólares anuais.
Obviamente, a ideia do socialista Mujica, ao chamar para o Estado a produção e comercialização da maconha, não é transformar o vício em negócio. Ao contrário. O presidente do Uruguai conquistou fãs ao redor do mundo por sua posição anticonsumo, como ficou explícito no célebre discurso na Assembleia das Nações Unidas, em setembro. “A política, eterna mãe do acontecer humano, ficou limitada à economia e ao mercado”, criticou. Não seria com a maconha, uma planta, que Mujica iria agir diferente, em busca de divisas para sua nação.
A principal dúvida recai sobre o modelo estatal de produção e comercialização. “Acho excessivamente regulamentado, diante de uma planta tão ‘anárquica’. Pode incentivar a desobediência civil a alguns pontos, como a necessidade de cadastro ou o limite de cultivo. Mas ainda é cedo para julgar”, pondera Tófoli. “O plano está posto. Vamos vê-lo em funcionamento na sociedade uruguaia para podermos criticar, sugerir melhoras e, principalmente, pensar como proceder no Brasil.”
Em um subcontinente dividido entre a névoa do socialismo do século XXI e uma esquerda desenvolvimentista à moda dos anos 60 do século passado, Mujica mostra-se uma liderança sintonizada às demandas da modernidade. Logo ele, mais parecido a um personagem saído de algum romance latino-americano do século XIX.


 -----------------------x-x-x----------------------
Maconha, porta de entrada (Artigo de Opinião)

Do O Dia – 08/02/2014

Rio - Os governos dos estados do Colorado e de Washington, nos Estados Unidos, que liberaram o consumo da maconha para fins recreativos e vão supervisionar o cultivo, a distribuição e até o marketing, vão dar uma alavancada na economia. Segundo pesquisa, a venda da maconha deve saltar de 1,4 bilhão de dólares para 2,34 bilhões. Mas, no futuro, quantos milhares de jovens serão afetados por essa decisão?
A partir de agora, esses jovens vão poder consumir, sem problemas, uma substância que, comprovadamente, afeta o cérebro humano, principalmente do adolescente, e reduz o desempenho escolar. E ainda pode aumentar o número de pessoas com problemas de memória e esquizofrenia.
Foi comprovado estatisticamente que em todos os países em que a maconha foi legalizada — como na Suécia, nos anos 70 —, houve um aumento de consumidores. A maconha pode não viciar tanto quanto outras drogas, como defendem alguns especialistas. Mas é a porta de entrada. Desafio qualquer ‘especialista’ a ir a uma cracolândia e perguntar ao usuário de crack se antes de se tornar um viciado ele não começou dando um ‘tapinha’ num cigarrinho de maconha. Cerca de 90% dos usuários de crack começam assim.
Em dezembro, o governo do Uruguai, além de liberar o consumo, tomou para si o trabalho dos traficantes e, também, vai produzir e vender maconha. A alegação do governo é a redução da criminalidade.
Não sei se é uma ingenuidade, um despreparo ou falta de conhecimento acreditar que uma lei que regula a produção e a venda — e libera o consumo — vai conseguir reduzir a criminalidade, ou acabar com o narcotráfico, já que 80% da renda do tráfico vem da cocaína e derivados.
A única certeza é que a liberação da maconha vai provocar um aumento considerável do número de viciados. O Uruguai pode estar assinando a certidão de óbito, no longo prazo, de milhares de jovens. A liberação da maconha pode prejudicar toda uma geração.

Rodrigo Bethlem é secretário municipal de Governo e presidente do Conselho Municipal Antidrogas

 -----------------------x-x-x----------------------
A legalização é uma ação de paz (Artigo de opinião)

Da Le Monde Diplomatique Brasil – 01/01/2014


A legalização da maconha no Uruguai pode ser um marco na política sobre drogas na América Latina e no mundo. Mas antes de analisar os benefícios dessa mudança é necessário explicar como a maconha e outras drogas foram colocadas na ilegalidade no início do século XX. Com uma história milenar, a Cannabis só se tornou a “erva do diabo” depois de uma poderosa campanha de estigmatização recheada de preconceitos e interesses econômicos.
No âmbito global, o debate sobre a proibição das drogas começou em 1912, a partir da Convenção de Haia, com o foco na morfina, na heroína e na cocaína. Essa data é marcante para o início de uma política que trata as drogas como algo nocivo à sociedade e os mercadores dessas substâncias como “inimigos” das nações.
O governo norte-americano usou a Convenção de Haia para pressionar seu parlamento a endurecer a legislação restritiva ao comércio e ao uso de drogas. Isso resultou na aprovação do Harrison Narcotic Act, em 1914, que estabeleceu um duro combate ao ópio e seus derivados. Outro dado importante da Lei Harrison é a criação da figura criminal do traficante e do usuário de drogas. Para o primeiro, era imposta a pena de prisão e, para o segundo, o tratamento médico (compulsório, se necessário).
A proibição da maconha no território norte-americano se deu, curiosamente, após o fim da Lei Seca, que desautorizou as bebidas alcoólicas entre 1919 e 1933. O Marijuana Tax Act (Lei Tributária sobre a Maconha) de 1937 proibiu o cultivo, a distribuição e a comercialização da maconha nos Estados Unidos. Todo o aparato repressivo montado para reprimir o comércio de bebidas foi transferido para o combate à maconha e outras drogas ilícitas.
Curiosamente, o Brasil se antecipou radicalmente à fúria punitiva internacional, tendo ainda em 1830 a primeira lei proibindo o uso da maconha. A Câmara Municipal do Rio de Janeiro punia o “pito do pango”, denominação do fumo da Cannabisna época, que era visto como um hábito dos negros. Essa lei explicitava seu caráter racista ao descrever a pena para “escravos e outras pessoas” que utilizassem a erva. Os vendedores da planta eram punidos com multa de 20 mil réis e os usuários, com três dias na cadeia.
Serviu de base pretensamente científica para a proibição da maconha um discurso médico preconceituoso. O psiquiatra Rodrigues Dória (1857-1958) chegou ao ponto de apontar a maconha como uma espécie de vingança dos negros escravizados, que quereriam corromper os valores da cultura do “branco civilizado”. Atrelada a esse discurso, existia uma intolerância aos cultos africanos que utilizavam a maconha nos rituais sagrados. Após a Proclamação da República, uma mesma “delegacia” combatia a maconha e os candomblés: a Inspetoria de Entorpecentes, Tóxicos e Mistificações. Na ditadura Vargas (1937-1945) era comum que a polícia invadisse e destruísse terreiros que não haviam abolido o uso ritualístico da maconha.
No cenário internacional, o ano de 1961 foi marcante para a consolidação da política proibicionista, com a Convenção Única de Entorpecentes da ONU. Os mais de duzentos países signatários se comprometeram a adotar medidas mais restritivas em relação a certas drogas, punindo quem as produzisse, vendesse ou consumisse. O que já era um modelo repressivo ficou ainda mais duro quando o presidente Richard Nixon fez um pronunciamento em 1972, apontando os psicoativos como “os inimigos número 1 da América” e declarando “guerra às drogas”. Muitos apontam que essa cruzada de Nixon contra as drogas ilícitas na verdade tinha como alvo os hippies, o movimento negro e movimentos da contracultura, vistos como grandes opositores de seu governo conservador.

“Esse é o seu cérebro”
No bojo de tal política, o governo norte-americano desenvolveu uma poderosa campanha midiática para alertar e amedrontar a população sobre os perigos do uso de drogas ilícitas. Um famoso comercial de televisão exibia um ovo fritando e dizia: “Esse é o seu cérebro quando você usa drogas”.
Para “provar” que o uso de maconha era capaz de destruir os neurônios dos usuários, o governo apresentou uma pesquisa feita com macacos que tiveram dano cerebral após serem forçados a inalar a fumaça da Cannabis em testes de laboratório. Posteriormente essa pesquisa teve sua metodologia questionada, pois os macacos foram submetidos à fumaça da maconha através de uma máscara que despejava no corpo dos primatas uma dose equivalente a 63 baseados, durante cinco minutos por dia, em seis meses (nível absurdamente exagerado para o padrão de consumo). O que causou a morte de neurônios dos macacos não foi o uso frequente da maconha, mas a asfixia que ocorria durante o teste.
Outra estratégia que a política proibicionista adotou para aterrorizar a população sobre os efeitos da maconha foi propagandear que ela seria “porta de entrada” para outras drogas mais pesadas. O que é tratado pelo senso comum como fato científico não passa de uma questão cultural do uso de drogas, que pode mudar de acordo com o tempo, grupo social ou região. Não existe nenhum componente na maconha que desperte o interesse por drogas mais pesadas, como a cocaína ou a heroína. Muitos usuários de cocaína podem ter usado maconha anteriormente, mas entre as duas drogas não existe nenhum elo biológico. Na verdade, a maior parte dos usuários de maconha não consome outras drogas ilegais. Inclusive, há um estudo em São Paulo que aponta que a Cannabispode ser utilizada para reduzir danos ou até para afastar pessoas do uso de drogas mais pesadas, como o crack.
Na conta perversa do proibicionismo também podemos colocar o impedimento ao uso medicinal da maconha, apesar de suas propriedades terapêuticas serem muito bem documentadas e constarem no Pen-Ts’ao Ching, considerada a primeira farmacopeia conhecida do mundo, de 2723 a.C. Nessa publicação chinesa é descrito o efeito analgésico, anticonvulsivante e tranquilizante da Cannabis. Uma história famosa de uso medicinal da maconha vem do final do século XIX, na Inglaterra, onde a rainha Vitória seguia a receita do doutor R. Reynolds e usava essa erva para aliviar dores e cólicas. No Brasil, até o início do século XX, era possível encontrar nas farmácias as “Cigarrilhas Grimault para asma, catarros e insônia”.
Mesmo assim, a Convenção Única de Entorpecentes de 1961 relacionou a maconha em duas categorias: como planta sem nenhum valor medicinal e na de drogas especialmente perigosas. Nesta última a maconha ficou equiparada com a heroína.
Na era moderna, a maconha medicinal já se provou eficaz no alívio das náuseas causadas pelo tratamento quimioterápico, no estímulo do apetite tão necessário aos portadores do vírus HIV e na diminuição da pressão intraocular para pacientes com glaucoma.

Avanços na descriminalização
E foi no campo da maconha medicinal que o castelo da proibição começou a desmoronar nos Estados Unidos. Graças a um plebiscito realizado em 1996, a população do estado da Califórnia aprovou uma iniciativa que regulamentou o cultivo e a venda de maconha para fins medicinais. Desde então, os pacientes precisam passar por uma avaliação médica para receber uma receita com a quantidade de maconha que poderão comprar em estabelecimentos formais, conhecidos como dispensários. Lá, é possível adquirir a Cannabis em sua forma natural ou comprar bolos, biscoitos, leite, refrigerantes e outros produtos que proporcionam o barato e o alívio dos componentes psicoativos da erva.
Passados dezessete anos, outros dezenove estados dos EUA aprovaram leis que regulamentaram o mercado de maconha medicinal. Em 2012, Colorado e Washington avançaram para a legalização do uso recreativo, apesar de a legislação federal norte-americana ainda considerar qualquer forma de uso ilegal. Nesses dois estados, os primeiros empreendimentos já estão em funcionamento e economistas fazem estimativas de um negócio bilionário para os próximos anos. Todo esse dinheiro estará inserido em uma economia formal e tributada. O Colorado já definiu o imposto de 15% para a compra no atacado e outros 10% para a venda no varejo. O governo estadual vai destinar a arrecadação ao financiamento de escolas públicas, a programas de atendimento a dependentes químicos e à política de regulamentação.
Sobre o uso recreativo, é imperativo citar a experiência da Holanda, onde em 1975 o coffeeshop Bulldog foi inaugurado no Red Light District (bairro também conhecido pelas casas de prostituição). Naquele ano foi iniciada a venda legal de maconha no varejo, e a fama do país correu o mundo, despertando até mesmo a curiosidade de “caretas” que visitam a cidade de Amsterdã. Especificar que apenas a venda no varejo foi legalizada não é uma simples sutileza. O que muitos não sabem da “legalização” na Holanda é que apenas a venda para o consumidor final (com o limite de 5 gramas por cliente) é permitida. Quando o coffeeshop adquire a erva no atacado, o comerciante está realizando uma transação ilegal. Também é criminoso aquele que cultiva e vende a Cannabis em grande quantidade. Essa contradição nas regras do jogo é conhecida por lá como the backdoor problem (o problema da porta dos fundos). O proprietário do coffeeshop compra violando a lei e vende emitindo nota fiscal.
No avanço das políticas de legalização, o Uruguai será o próximo país a acabar com a proibição da maconha. Apesar de dizer que “não gosta de maconha”, o presidente José Mujica teve a consciência de propor a legalização com o objetivo de enfraquecer as finanças do narcotráfico, tirando do controle de grupos criminosos o monopólio de produção e venda de uma planta tão valiosa. Pelo projeto uruguaio, o Estado vai administrar o cultivo e oferecer a erva para a venda em estabelecimentos credenciados, onde cada residente poderá comprar até 40 gramas por mês. A venda para turistas não será permitida.
Além disso, cada usuário poderá cultivar até seis pés de Cannabis por residência ou participar de uma cooperativa de produtores sem fins lucrativos, tendo entre quinze e 45 sócios. Nesse último modelo, a maconha colhida deverá ser distribuída entre os associados e não poderá ser comercializada. Com a recente aprovação do Senado uruguaio na produção e comercialização da maconha, a primeira “colheita estatal” deve ocorrer no início do segundo semestre de 2014.

O atraso brasileiro
Infelizmente, o Brasil ainda segue com uma exagerada fidelidade a cartilha da “guerra às drogas”. Chegamos ao absurdo de violar o princípio constitucional da liberdade de expressão e reunião ao proibir a realização da Marcha da Maconha, acusada de ser um ato criminoso de apologia ao uso de drogas. Apenas em junho de 2011, o Supremo Tribunal Federal reconheceu e declarou a legalidade das manifestações públicas em defesa da legalização das drogas.
Na esfera legislativa, temos em debate propostas que endurecem ainda mais o modelo proibicionista, justificadas como necessárias para conter uma suposta “epidemia do uso de crack”, que já foi desmentida por vários especialistas. O Projeto de Lei n. 7.663/2010 aumenta a pena mínima para acusados de tráfico de cinco para oito anos e fortalece a política de internações compulsórias para usuários de drogas. Essa mesma proposta ainda contava com um macabro “cadastro nacional de usuários de drogas”, no pior estilo dos instrumentos de controle social da Alemanha nazista. Depois de grande mobilização da sociedade civil, esse artigo foi suprimido do projeto.
A legislação brasileira tem como ponto positivo uma brecha que permite a instituições de pesquisa a possibilidade de cultivar maconha com finalidade científica. Mas a burocracia imposta pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) é tão grande que nenhuma instituição ou universidade detém essa autorização para pesquisar essa planta e todas as suas múltiplas utilizações terapêuticas, apontadas pelas medicinas antiga e moderna.
Analisando a história, é possível perceber que a proibição da maconha é sustentada por argumentos racistas, utilizados para a perseguição cultural de minorias, além de pesquisas de métodos questionáveis ou já desqualificados. A legalização da maconha é necessária e urgente para reparar todos esses equívocos e pela constatação de fracasso global do modelo proibicionista, admitido até em relatórios da ONU. Os mais de sessenta anos de proibição não conseguiram em nenhum momento eliminar o mercado ilegal de venda de maconha ou de outras drogas ilícitas. Pelo contrário: os dados desse período indicam uma expansão do consumo entre diferentes classes sociais, regiões e o surgimento de novas drogas.
Estima-se que 4% da população brasileira seja usuária de maconha. A maioria absoluta desses consumidores (com a exceção dos cultivadores caseiros) compra maconha sem nenhum controle de qualidade no mercado ilegal. Nesse ambiente, o usuário acaba tendo contato com outras drogas também ilegais, no que se pode chamar de verdadeira porta de entrada para outras drogas. Se a “porta de entrada” existe, é em razão da proibição que coloca substâncias tão diferentes, como a maconha e a cocaína, no mesmo pacote.
A proibição não funciona nem para controlar o uso, e hoje podemos dizer que, na prática, a venda de maconha está liberada. Afinal, qualquer pessoa, independentemente da idade, pode comprar a erva na favela ou no asfalto sem muita dificuldade. Estabelecer a legalização e regulamentação da maconha é uma medida para criar um controle sobre a produção, compra e venda dessa droga, e um ambiente onde mercadores não precisem portar armas ou controlar territórios para garantir a venda de maconha. Usuários terão a oportunidade de adquirir ou cultivar um produto que passe por um controle de qualidade, fundamental para quem utiliza um psicoativo. Cientistas e médicos terão mais liberdade para desenvolver novas terapias e receitar medicamentos à base de maconha.
A proibição e o combate às drogas já resultaram em um incontável número de conflitos entre criminosos e forças policiais. Também é incalculável a quantidade de mortos nessa guerra. Cerca de 14 mil brasileiras e mais de 117 mil brasileiros estão presos por vender ou transportar uma substância ilícita, muitas vezes enfrentando penas superiores ao do delito de estupro. Em todos os casos, o alvo da repressão é a ponta mais frágil desse mercado: os jovens negros e pobres das favelas, camponeses bolivianos ou imigrantes indesejáveis nos países desenvolvidos. A “guerra às drogas” é uma guerra aos pobres disfarçada, que só cumpre o papel de controle social e criminalização dos trabalhadores. A legalização é uma ação de paz.


Renato Cinco - Vereador do Rio de Janeiro, pelo PSOL. Sociólogo. Militante ecossocialista, libertário e do Movimento pela Legalização da Maconha.