Da Folha – 15/06/2013
A revelação de que o governo
Obama empenha um monitoramento da comunicação dos cidadãos pelo telefone e pela
internet suscitou uma controvérsia.
Na opinião do advogado
criminalista José Luis Oliveira Lima, "essa bisbilhotagem poderá causar
mais estragos do que uma bomba. Certamente existirão os abusos, bastando
lembrar que o governo americano que espiona 'para o bem' é o mesmo que atiça a
fiscalização tributária contra seus opositores e que vasculha ligações
telefônicas de jornalistas".
Joanisval Gonçalves Brito,
especialista em inteligência de Estado pela Abin (Agência Brasileira de
Inteligência), entende que há legitimidade na ação. "Nenhum direito
individual é absoluto. A vida em sociedade requer a mitigação de alguns
direitos individuais diante de certas necessidades coletivas, como a segurança.
Assim, se as pessoas estiverem sob uma ameaça de significativa gravidade, o
Estado pode mesmo violar a privacidade para protegê-las, sob a justificativa do
imperativo da segurança", argumenta.
Já
somos monitorados demais
Membros da Al-Qaeda devem ter
ficado satisfeitos em saber que, sob o pretexto de combater o terrorismo, o
governo americano instalou uma ampla rede de espionagem por meio do
monitoramento geral e indiscriminado de seus próprios cidadãos.
As informações são imprecisas,
mas sabe-se que números de chamadas telefônicas de todos os cidadãos foram
disponibilizados para serviços governamentais de inteligência. Os dados
municiaram os trabalhos de agentes secretos que inseriram e depois retiraram os
responsáveis pelo atentado na maratona de Boston do rol de suspeitos. Espiões
que, talvez, foram colegas de curso dos ingleses que viram no brasileiro Jean
Charles um terrorista no metrô londrino.
Essa bisbilhotagem poderá causar
mais estragos do que uma bomba. Certamente existirão os abusos, bastando
lembrar que o governo americano que espiona "para o bem" é o mesmo
que atiça a fiscalização tributária contra seus opositores e que vasculha
ligações telefônicas de jornalistas.
Ainda que sem os inevitáveis
abusos, a própria democracia será atingida, uma vez que a intimidade é um
elemento essencial para a dignidade da pessoa humana. Desnudado desse pequeno campo
de proteção particular, o cidadão perde a capacidade de se enxergar como um ser
único e titular de direitos. Por consequência, também não consegue compreender
e respeitar as particularidades do outro. Sem o resguardo da vida privada, não
há ambiente para o desenvolvimento livre da personalidade, acabando com o
oxigênio vital para a sobrevivência de um Estado democrático.
No Brasil, felizmente, a proposta
americana de devassa indiscriminada não seria admitida em nosso sistema
jurídico. Aqui, a quebra de sigilo somente pode ser autorizada por uma decisão
judicial devidamente fundamentada, demonstrando que existem indícios de que
aquele específico cidadão é um possível autor de um determinado crime. Primeiro
deve vir a fundada suspeita, depois a investigação, jamais o contrário. A
violação à intimidade é tratada como medida de exceção, mas, ainda assim, são
constantes os abusos.
Confrontadas com uma ordem
abusiva, as próprias empresas responsáveis pela guarda dos dados sigilosos
podem lutar pelo resguardo da intimidade de seus registros.
Diante de uma ordem de quebra de
sigilo manifestamente indiscriminada e genérica, instituições financeiras,
operadoras de telefonia e provedores de internet podem impetrar mandado de
segurança para impedir uma devassa coletiva que ameace a privacidade de seus
clientes.
Exemplificando, um banco possui
legitimidade jurídica para se insurgir contra uma ordem de entrega de extratos
de todos os clientes de uma agência. Defende-se o direito de guardar segredos.
O indivíduo alvo da violação, logicamente, também pode agir para impedi-la ou
cobrar reparação pelo dano sofrido.
Ações em defesa da intimidade são
cada vez mais necessárias no mundo moderno. Hoje, cada um de nossos passos fica
registrado: a compra com cartão de crédito, a multa do automóvel, a conversa na
rede social, os sites acessados, os números discados. Ao vivermos já somos
involuntariamente monitorados.
Esse enorme banco de dados pode
evidentemente ser utilizado no combate ao crime, mas somente diante de uma
fundamentada suspeita contra o cidadão. Buscar um maior poder do Estado no uso
da tecnologia para um controle social extremo significa rejeitar a democracia e
correr em busca do autoritarismo. É justamente nesse momento em que nossa
segurança é ameaçada que devemos nos lembrar de que garantias individuais como
a intimidade não representam um entrave a nossa proteção, mas, sim, traduzem a
essência de nossa humanidade.
JOSÉ LUIS OLIVEIRA LIMA, 47, é
advogado criminalista e membro do Instituto dos Advogados de São Paulo
Big
Brother e democracia
Quando, em 1949, George Orwell
escreveu o romance "1984", tratou de uma sociedade futurística, na
qual o Estado controlava os cidadãos de maneira absoluta, vigiando-os no mais
íntimo de sua privacidade, determinando sua maneira de pensar.
Retratou um Estado onipresente,
representado pela figura do Big Brother, que tudo via e tudo sabia. Entretanto,
"1984" tratava de um regime totalitário. No século 21, o Grande Irmão
chegou às democracias.
Nas últimas semanas, com a
revelação de que o governo dos Estados Unidos estaria reunindo dados a partir
de interceptações telefônicas e acessos irregulares a mensagens e contas na
internet de milhões de pessoas, o tema do Estado controlador do cidadão voltou
à tona.
Nenhum direito individual é
absoluto. A vida em sociedade requer a mitigação de alguns direitos individuais
diante de certas necessidades coletivas, como a segurança. Assim, se as pessoas
estiverem sob uma ameaça de significativa gravidade, o Estado pode mesmo violar
a privacidade para protegê-las, sob a justificativa do imperativo da segurança.
Esse é o argumento do governo
Obama. E encontra acolhida em mais da metade dos estadunidenses, segundo
pesquisas recentes: 56% dos entrevistados aprovam o monitoramento das
comunicações telefônicas, enquanto 41% consideram a prática inaceitável.
Ao menos nos Estados Unidos, o
assunto ainda suscitará discussão. E ali parece razoável que o Estado monitore
seus cidadãos para protegê-los. Sob a perspectiva do povo norte-americano, a
garantia da segurança coletiva e a proteção aos valores democráticos e aos
princípios fundadores de sua nação seriam justificativas plausíveis para
limitar liberdades individuais.
É certo que direitos fundamentais
podem se ver limitados por razões de Estado, em especial quando a sociedade é
alvo de ações contrárias à ordem democrática estabelecida. Porém, para que o
Estado limite direitos dos cidadãos, é fundamental que haja critérios que
impeçam que agentes públicos cometam arbitrariedades.
O monitoramento das contas e
comunicações dos indivíduos, se ocorrer, deve ser feito sob rígidos mecanismos
legais e institucionais de controle. Caso contrário, abusos serão cometidos
pelos órgãos de segurança e inteligência, uma vez que lidam com informação e
poder.
De fato, algo que diferencia os
regimes democráticos dos autoritários é que, no primeiro caso, os serviços
secretos protegem o cidadão e estão sob o mais rígido controle do Judiciário e
do Legislativo. Também a sociedade civil organizada, com destaque para o papel
da imprensa, deve ter essa prerrogativa.
Se, no país de Obama, é possível
e até aceitável de acordo com suas leis, que o Estado monitore os cidadãos, no
Brasil essa prática encontra limites claros. A Constituição só permite
interceptação telefônica para fins de investigação criminal ou instrução
processual e apenas com autorização judicial.
Entretanto, muito difícil será
impedir que autoridades estadunidenses monitorem as comunicações de
brasileiros. Afinal, quem controlará as ações de política externa dos Estados
Unidos? Que força terão os governos de outros países para impedir ou
neutralizar iniciativas tecnológicas intrusivas da superpotência?
Seria ingênuo imaginar que, se
houver uma determinação de um governo como o dos Estados Unidos, respaldada em
leis e em autorização judicial ou legislativa, as informações pessoais de
qualquer ser humano pelo globo ficarão a salvo do monitoramento.
Na era do conhecimento e da
realidade virtual, as pessoas devem estar conscientes de que podem ser objeto
de vigilância, legal ou não. O Big Brother está lá, ainda que não gostemos
dele.
JOANISVAL BRITO GONÇALVES, 38, é
advogado e especialista em inteligência de Estado pela Abin (Agência Brasileira
de Inteligência)
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