Do Estadão – 30/06/2013
Na última semana, enquanto em uma
decisão histórica a Suprema Corte dos EUA derrubava a lei que proibia o governo
federal de reconhecer matrimônios entre pessoas do mesmo sexo, um triste
balanço divulgado aqui pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República (SDH) revelava um aumento de 46,6% nos casos de violência física,
psicológica e discriminação contra homossexuais no Brasil em 2012. As vítimas
mais frequentes foram homens jovens e gays, com idade entre 15 a 29 anos.
Na América, o presidente Barack
Obama comemorava o resultado, que garante mais igualdade e benefícios para os
casais do mesmo sexo. Uma semana antes, em meio à tempestade de protestos e
manifestações que só cresciam no Brasil, o deputado e pastor evangélico Marco
Feliciano (PSC-SP) festejava a aprovação do projeto conhecido como "cura
gay" (PDC 234/11) na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos
Deputados, que é presidida por ele. O projeto ainda precisa passar pela
Comissão de Seguridade e pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania
para ir a plenário, o que se espera que não deva acontecer.
A última semana foi também de
algumas vitórias importantes das manifestações populares: queda do valor nas
passagens de ônibus em diversas cidades, a rejeição da PEC 37 quase por
unanimidade, corrupção sendo votada como crime hediondo e a promessa do passe
livre para estudantes, entre outras. As ruas catalisaram mudanças rápidas em
questões que pareciam estagnadas na pasmaceira que se instalou no País. Ao
mesmo tempo protagonista e vítima de conchavos, alianças imobilizadoras e apego
excessivo aos privilégios e poderes, nossa classe política tem amargado
sucessivos fiascos. Um deles é Feliciano na presidência dessa comissão e a
aprovação, sob seu comando, do projeto da "cura gay".
A questão central é que algumas
dessas bizarrices podem culminar em mensagens de intolerância, preconceito e
discriminação contra homossexuais, negros e mulheres, o que só aumenta a
violência no País.
Não há como redirecionar (ou
"curar") a orientação sexual de ninguém. Primeiro, porque homo ou
bissexualidade não são transtornos ou doenças. São simplesmente variações
possíveis do afeto e da sexualidade do ser humano. Depois, porque um suposto
tratamento é absolutamente inócuo: um método sem resultados práticos ou
comprovação da ciência. Pode dar choque, apertar os testículos, amputar
clitóris, aplicar hormônio, criar estímulos aversivos, fazer lavagem cerebral
(pasme, mas esses métodos medievais foram utilizados ao longo da história!) que
a orientação sexual não muda. Da mesma forma que quem é baixo não vira alto,
quem é branco não vira negro, gay não vira heterossexual, assim como
heterossexual não vira gay. Cada um é o que é!
Nos primeiros anos de qualquer
curso na área de saúde, aprendemos que nosso papel é ajudar, tratar, aliviar o
sofrimento e curar, quando possível. A nós, não cabe julgar ou avaliar condutas
e atitudes. Não é de nossa atribuição dizer se é certo ou errado o que um
paciente faz, pautando essa avaliação em nossas crenças pessoais, religiosas,
morais, éticas, políticas, etc. Da mesma forma, não deveria caber a um político
tomar decisões que estão fora da sua alçada, baseado em suas convicções
próprias, que não refletem os anseios da maior parte da população.
Com base em evidências
científicas e com a progressiva dissociação da medicina e da psicologia das
questões culturais e religiosas desde meados do século passado, a Organização
Mundial da Saúde e, no Brasil, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) proibiram
charlatães e fanáticos de tentar converter gays em heterossexuais, em curar o
que não é doença por meio de supostos tratamentos "normatizadores" do
comportamento sexual. Além de perpetuar um sofrimento desnecessário à pessoa,
essas tentativas não levam a lugar nenhum. Terapeutas, médicos e psicólogos de
orientação religiosa (seja ela qual for) têm de aprender a separar suas crenças
da vida do paciente. Não faz o menor sentido reverter a resolução do CFP, em
vigor desde 1999.
No momento em que os jovens saem
às ruas para tentar mudar o que está errado, para pensar em um Brasil mais
justo, é inadmissível tolerar que uma conduta política, pautada por supostas
crenças pessoais e religiosas, determine rumos e decisões sobre o que é absolutamente
particular na vida de cada um.
JAIRO BOUER é psiquiatra e
trabalha em saúde e prevenção.
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