Da Folha – 15/05/2013
O cineasta Fernando Meirelles
disse à Folha em abril que a televisão ficou mais interessante que o cinema. O
jornalista, escritor e especialista em regulação da Ancine (Agência Nacional do
Cinema) Luciano Trigo concorda. Segundo ele, é na TV, não mais no cinema, que
criadores agora encontram condições de desenvolver novos modelos de narrativa
audiovisual.
Mas para Renata de Almeida,
diretora da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, a telona ainda é
insubstituível. "As séries podem errar mais, porque no próximo capítulo
você pode ser compensado. Isso não é possível no cinema, em que a relação tem
que ser construída rapidamente e uma história tem que ser contada em poucas
horas. E, ainda assim, ele comporta vidas inteiras."
O
ASSUNTO É: TV VERSUS CINEMA
Olhar para frente
"Quando vamos ao cinema,
olhamos para cima. Quando vemos televisão, olhamos para baixo." As
palavras de Jean-Luc Godard me vieram à cabeça quando li na Folha uma declaração
do cineasta Fernando Meirelles que, pouco tempo atrás, seria recebida como
herética ou estapafúrdia: "A TV é hoje mais interessante que o
cinema" ("Ilustrada, 23/4). E, no entanto, é difícil discordar quando
se pensa na qualidade de alguns conteúdos televisivos.
Não se trata de forçar uma
comparação que pode ser descartada como artificial ou fútil, já que sempre
houve bons conteúdos na TV, assim como maus filmes no cinema. Mas alguma coisa
está mudando. A hierarquia implícita na declaração de Godard, que prevalece
desde a invenção da TV, está sendo pela primeira vez desafiada, por motivos
tecnológicos na origem, mas com implicações que ainda não são claras para o
futuro das duas mídias.
Historicamente, todas as teorias
do cinema tiveram como fundamento a busca pela especificidade do meio, isto é,
a investigação sobre os elementos da linguagem, forma e técnica que lhe
conferiam autonomia.
O impacto cultural e econômico da
chegada da televisão obrigou o cinema a mergulhar num processo de reinvenção
--até por necessidade de sobrevivência, já que a frequência às salas despencou.
A indústria apostou então em inovações que tentaram preservar, com êxito
variado, o caráter único da experiência cinematográfica.
A mensagem formulada pelos
teóricos passou a ser esta: por mais cômoda que seja para o espectador,
alterando seus hábitos de consumo audiovisual, a televisão jamais terá a
espessura estética e a força sedutora do cinema. Este simplesmente não cabe na
tela da TV, um meio inferior e vulgar na sua essência.
Isso está acabando. A
convergência digital eliminou, primeiro, a própria materialidade da diferença:
com o fim anunciado da película, a imagem televisiva e a imagem cinematográfica
passam a compartilhar a condição de informação pura, que pode circular nas
mesmas e em múltiplas telas.
Há outros processos em curso: se
o cinema não cabia na TV, conteúdos tipicamente televisivos já invadem as
salas, como eventos esportivos. Por outro lado, nasce uma nova cinefilia
facilitada, paradoxalmente, pelo YouTube, que se torna o meio de acesso básico
ao acervo cinematográfico do passado: adolescentes chegam à "nouvelle
vague" e ao cinema novo por meio da internet.
Dilui-se, assim, a fronteira que
separava a experiência compartilhada e nobre da sala escura da experiência
dispersiva e banal do consumo doméstico.
Com o fim da especificidade
cinematográfica, alicerce teórico do pensamento sobre o meio por mais de um
século, cria-se um novo paradigma audiovisual, e quem não compreender esse
processo corre o risco de cair na irrelevância.
Por outro lado, a convergência,
que costuma ser analisada apenas em termos de tecnologia e serviços, terá
também efeitos estéticos preocupantes. Para que os mesmos conteúdos circulem,
sem perda expressiva de qualidade, pelas telas do computador e da TV, do cinema
e do celular, há o risco de uma convergência de linguagens potencialmente
empobrecedora.
Os caminhos e espaços para a
invenção autoral serão outros, o que dará talvez razão a Meirelles e tornará
obsoleta a visão de Godard: é na TV, e não mais no cinema, que os criadores
estão encontrando as condições de desenvolver um laboratório experimental para
produzir novos modelos de narrativa audiovisual e de comunicação com o público.
O negócio não é olhar para cima nem para baixo, mas para frente.
LUCIANO TRIGO, 48, jornalista e
escritor, é especialista em regulação da Ancine (Agência Nacional do Cinema)
Lua de mel
A TV é hoje mais interessante que
o cinema? Não! Talvez a pergunta pudesse ser esta: a televisão que você tem
assistido hoje é mais interessante do que o cinema que você tem visto? Não sei
por que o elogio muitas vezes é ligado à necessidade da comparação, como se o
objeto não pudesse ser bom por si só.
Já ouvi essa frase várias vezes,
sempre ligada ao cinema norte-americano, mas parece que agora se generalizou.
Talvez esteja em voga no Brasil porque vivemos uma lua de mel com a televisão,
graças à lei da TV paga. A medida está revolucionando o mercado para os
produtores independentes e abrindo o caminho para novos olhares, o que é sempre
muito positivo.
Ao mesmo tempo, temos a internet,
Netflix, Now, AppleTv e, claro, os lançamentos em DVD. Isso possibilita vermos
séries, americanas principalmente, de uma só vez ou conforme a nossa vontade.
Mas não é de hoje que as séries
americanas são boas ou ousadas. É só lembrar do Agente 86 em plena Guerra Fria
ou de "Mash" durante a Guerra do Vietnã. Também não é de hoje que a
televisão brasileira tem programas com um ótimo padrão de qualidade.
Mas nada substitui o cinema. Os
filmes antigos e também os atuais, que continuam, sim, muito interessantes.
Claro, dependendo do que cada um se dispõe a ver. Ou do que cada um consegue
ver por causa do pequeno circuito de salas exibidoras para o tamanho do país.
O nível de exigência e a atitude
que temos quando vemos um filme não são os mesmos de quando vemos TV. As séries
podem errar mais, porque no próximo capítulo você pode ser compensado. Isso não
é possível no cinema, em que a relação tem que ser construída rapidamente e uma
história tem que ser contada em poucas horas.
E, ainda assim, ele comporta
vidas inteiras. Basta lembrar de "Nós que Nos Amávamos Tanto",
"1900", "Era Uma Vez no Oeste" ou "2001 - Uma Odisseia
no Espaço".
Na Europa, a relação do cinema
com a televisão sempre foi muito próxima, muitas vezes simbiótica. Por isso,
essa afirmação não faria muito sentido por lá. Grandes nomes do cinema como
Bergman e Fassbinder fizeram trabalhos para a TV e outros continuam fazendo.
Felizmente, no Brasil, parece que
está acontecendo algo parecido: profissionais de televisão se tornaram também
profissionais de cinema e vice-versa.
Grandes nomes do cinema
brasileiro de hoje fizeram seus primeiros trabalhos na televisão, muitas vezes
excelentes, mas foi no cinema que conseguiram a sua consagração. Então,
esperemos que eles não abandonem o fazer cinema, que pode ser desgastante,
levar anos e ser arrasado com uma frase leviana.
Muitas histórias não podem ser
diluídas em vários capítulos. Se ainda tivermos o prazer de ver um filme em uma
sala grande, o cinema se torna uma experiência única. Mas, se perdermos essa
oportunidade, ainda poderemos contar com a televisão e seu maravilhoso poder de
democratizar a informação.
Esperamos com isso que os
diretores e produtores fiquem mais satisfeitos com o seu público, que tem que
ser contabilizado em todos os formatos que hoje o cinema possui.
RENATA DE ALMEIDA, 47, é diretora
da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo
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