Da Carta Capital – 10/02/2014
Ao onerar mais o consumo que a
renda e a propriedade, o sistema tributário brasileiro pune os mais pobres e
alivia a carga do topo da pirâmide social
por Samantha Maia
Daqui a mais ou menos seis meses,
encerrada a Copa do Mundo, o Brasil mergulhará em uma nova campanha
presidencial. Ainda não se sabe qual tema "novo" dominará os debates.
Em 2010, o aborto consumiu um tempo precioso dos candidatos e, pior, esgotou a
paciência do eleitorado, em desfavor de assuntos mais pertinentes. A
"velha" agenda é, porém, fartamente conhecida. Tanto a candidata à
reeleição, Dilma Rousseff, quanto os seus prováveis adversários, Aécio Neves e
Eduardo Campos, vão prometer, antes de o galo cantar três vezes, uma série de
reformas para melhorar a vida dos cidadãos. Entre elas não faltarão as
propostas de reformulação do sistema tributário.
A mudança nos tributos é uma
pauta antiga dos empresários e da chamada classe média. A carga de impostos de
36% do Produto Interno Bruto está bem acima da média dos países de economia
semelhante à brasileira. O sistema é burocrático, confuso, pune quem deseja
produzir, encarece os produtos nas gôndolas e não estimula a inovação. Em
resumo, é anticompetitivo e atrasado. Segundo a consultoria Deloitte, as
empresas de pequeno porte gastam 3,53% do seu faturamento somente para cuidar
da complexa administração dos tributos.
Dito isso, o debate sobre o
assunto tem servido muito mais a mistificações do que ao esclarecimento das
ideias, embora não faltem informações a respeito (especialistas de distintas
filiações ideológicas e diferentes nações produziram nos últimos anos
diagnósticos interessantes sobre os impostos brasileiros). Os dados, em boa
medida, contradizem as versões dominantes sobre onde realmente se localizam as
distorções.
Um problema central, apontam os
estudos, está no fato de a estrutura brasileira ser um fator determiante para o
aprofundamento das diferenças regionais e da desigualdade social. O sistema
onera fortemente o consumo e pouco a renda. Os tributos sobre o patrimônio,
raramente lembrados nas discussões, são metade do cobrado nas nações desenvolvidas,
segundo dados da insuspeita Organização de Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE), clube dos países ricos. Na outra ponta, os impostos
recolhidos em mercadorias e serviços alcançam 45% da carga total, um peso
insuportável para quem se propõe a produzir. "Quanto menor o nível de
renda de uma família, maior a destinação ao consumo.e maior a exposição à
tributação mais alta.
Essa é a origem básica da
regressividade", resume a diretora da Fundação Instituto de Pesquisas
Econômicas, Maria Helena Zockun. A palavra regressividade significa que quem
grita menos, a imensa maioria desinformada, é uma espécie de Atlas mitológico:
carrega nas costas u m modelo iníquo e vilipendiado pela sonegação dos espertos
e as manobras contábeis urdidas por advogados bem remunerados.
Os cidadãos que mais reclamam em
geral são menos molestados pelo famoso Leão. O quadro à página ao lado é
ilustrativo.
Enquanto um trabalhador que
recebe salário mínimo deixa, ao consumir, 37% de sua renda nos cofres do
governo, quem aufere 22 mil mensais desembolsa apenas 17%, de acordo com o seu
padrão de gastos.
Nem se fale da porção superior da
pirâmide social, o nosso 1%. O Brasil, em comparação à maioria dos países e em
especial às nações desenvolvidas, além de tributar mal o patrimônio, como já
exposto, também cobra poucos impostos sobre a renda e praticamente nada quando
se trata da transmissão de herança. A maior alíquota do Imposto de Renda é de
27,5%, ante 55,9% nos Estados Unidos, para citar a meca do livre-mercado. Mesmo
assim, trata-se de um dado meramente estatístico: ninguém paga 27,5% de IR. Com
os descontos por faixa de renda válidos a todos os contribuintes e as deduções
permitidas (os gastos com escola, saúde e previdência privada podem ser em
parte descontados), um indivíduo com salário de 22 mil por mês consegue
derrubar a alíquota total sobre os seus ganhos para 17%. Na média, o porcentual
efetivo no Brasil não ultrapassa 10% da renda.
Outro comparativo da Comissão
Econômica para a América Latina e o Caribe expõe o resultado dessa distorção.
Por si só, o sistema brasileiro, entre a arrecadação e a distribuição dos
recursos, reduz em meros 3,6% a desigualdade de renda, um pouco abaixo da média
medíocre da América Latina (3,8%), subcontinente campeão das disparidades sociais.
Entre 15 países da União Europeia, o Fisco é responsável por uma redistribuição
média de 32,6%. Na Dinamarca, o índice alcança 40,8%.
Alguém dirá: o Estado não oferece
serviços à altura dos impostos pagos anualmente pela sociedade. E fato, em
parte. A saída estaria, portanto, em uma redução radical da carga tributária,
certo? Não, diz o economista José Roberto Afonso, pesquisador do Ibre. "O
desafio não é reduzir a carga, mas melhorar a sua qualidade, com a diminuição
dos impostos indiretos, perversos, e o aumento dos diretos, mais justos."
Nos últimos anos, Afonso tem se
dedicado ao tema dos impostos e produz estudos fundamentais para entender as
iniquidades e ineficiências do sistema no Brasil. Antes que algum liberal o
acuse de sofrer a doença "do estatismo ou do comunismo", seria bom
lembrar sua trajetória. O economista é historicamente ligado ao PSDB e, em
especial, ao ex-tudo-menos-aquilo-que-ele-realmente-gostaria-de-ser José Serra.
Afonso faz uma ressalva ao
impostômetro, o festejado medidor da Associação Comercial de São Paulo que
atualiza a cada segundo o total de tributos pagos no País. Segundo ele, o valor
global pouco explica a estrutura perversa das cobranças. O 1,7 trilhão de reais
indicado no painel como o total no ano passado esconde uma informação
reveladora: quem recebe acima de 30 salários mínimos precisou trabalhar três
meses a menos para pagar o seu quinhão do que um cidadão da base da pirâmide
social. "Ninguém está incomodado, pois os mais prejudicados não têm voz, e
os outros ficam quietos. O debate não ganhou densidade, é um tema árido, os
mais pobres nem percebem que pagam imposto, e fica por isso mesmo", diz
Zockun.
Embutidos nos preços, os impostos
indiretos (ICMS, ISS,IPI,PIS e Cofins) passam praticamente despercebidos,
apesar de seu enorme peso na arrecadação. A soma das alíquotas é, em média, de
68%, ante 16% na média do máximo taxado em 31 países que adotam tributos
semelhantes, segundo levantamento da Fipe. Desde junho de 2013, uma lei exige a
decomposição, na nota fiscal, dos impostos, uma forma de o comprador ter a
exata noção de quanto paga ao adquirir um produto ou serviço. Os comerciantes
reclamam, porém, da dificuldade em fazer o detalhamento, dada a complexidade do
sistema tributário.
"Saber o quanto se paga na
aquisição de um bem poderia provocar uma pressão da sociedade por uma reforma
tributária, mas não há solução fácil", diz Clemente Ganz Lúcio, diretor do
Dieese. Um primeiro passo, diz Zockun, teria sido aprovar, no Senado, uma
proposta de 2008 que previa o estabelecimento de um imposto único nacional
sobre valor agregado, aos moldes do IVA europeu. "O projeto não avançava
sobre a regressividade, mas, ao simplificar o sistema e mostrar o imposto nas
notas fiscais, surgiria alguma reação de baixo", acredita a pesquisadora.
A ideia não avançou pela pressão dos governadores, contrários a reduzir o ICMS,
a principal fonte de arrecadação das administrações estaduais. As alíquotas de
ICMS são particularmente altas em serviços essenciais: luz elétrica e
telecomunicações.
O ISS também tem ganho
importância nos orçamentos municipais, em mais um movimento de aumento da
desigualdade, ao encarecer tarifas de ônibus, cabeleireiros e oficinas
mecânicas. Enquanto isso, o IPTU, o imposto sobre propriedades urbanas que pode
ter alíquotas diferenciadas por faixa de renda, perdeu participação na
arrecadação. Em 93% das cidades, o valor recolhido com o imposto fica abaixo do
IPVA, cobrado dos veículos. Pior: segundo o Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada, as falhas no sistema de avaliação do valor do imóvel tornaram o IPTU
regressivo, ou seja, proprietários de imóveis mais caros pagam
proporcionalmente menos imposto. "O IPTU é um imposto mais justo, mas tem
uma alta rejeição por falta de conhecimento de quem paga, de quem não paga e,
principalmente, por não haver transparência dos governos em relação à aplicação
dos recursos", diz Afonso.
São Paulo é o principal campo
dessa guerra. O prefeito petista Fernando Haddad foi proibido pela Justiça de
aumentar o IPTU. Antes da interferência do Judiciário, Haddad havia, porém,
perdido a batalha da comunicação: até aqueles que desembolsariam menos e os
isentos da taxa se declararam contra as mudanças na cobrança.
O caso brasileiro de tributar
pouco a propriedade é peculiar, afirma Afonso. "Nos EUA, existe um sistema
de educação vinculado ao pagamento do IPTU e é comum uma família escolher
morarem um distrito por conta da escola pública. E o tipo de lição para a qual
o Brasil deveria olhar."
Na mesma linha, o País quase não
arrecada de propriedades rurais. A arrecadação do ITR corresponde a 0,01% do PI
B e, provavelmente, mal cobre os custos de seu lançamento. A falha, diz o
economista Ladislau Dowbor, estimula a concentração e a improdutividade.
"Não temos retorno dos grandes investimentos em terra. E possível ficar
sem produzir, pois ela não custa ao proprietário."
O imposto sobre herança também é
irrisório. Em meio a tantos discursos infiados em defesa da meritocracia, o
Brasil permite a herdeiros usufruir, sem a necessidade de algum esforço
próprio, com as riquezas construídas pelos pais. Nos Estados Unidos, a doação
de fortunas para fundações é estimulada pelo fato de a transferência da herança
ser tributada em até 50%. No Brasil, a alíquota mais alta é de 8%. "Claro
que existe uma margem de isenção, mas ninguém acusa os Estados Unidos de serem
contra a propriedade por tributar dessa forma", diz Claudio Hamilton dos
Santos, diretor do Ipea.
A tributação sobre a renda
representa apenas 19% da carga brasileira. O Sindifisco encabeça uma campanha
pelo reajuste da tabela do IR, cuja defasagem é de 66% e leva os salários mais
baixos a pagarem cada vez mais. Outros grupos defendem a inclusão de alíquotas
maiores para chegar a patamares mais elevados de ganhos, além da taxação de
grandes fortunas. Mas a pouca representatividade do IR no total da carga,
avalia Zockun, em nada seria afetado se mantidas as permissões para descontos.
"A tributação direta acaba pequena para qualquer nível de renda, pois as
deduções fazem com que a tributação efetiva seja muito menor."
Para alcançar as camadas mais
altas de renda, explica Afonso, o foco precisa sair do imposto sobre pessoa
física e ir para a jurídica, onde existe uma alíquota geral de 15%. Como forma
de reduzir o custo do trabalho, o Brasil estimulou certas categorias
profissionais e funcionários de altos salários das empresas a se tornarem
"empresas". Por extensão, permitiu-se a muitos deles ingressar no
Simples, um sistema de recolhimento que reduz o porcentual de pagamento.
"O aumento das alíquotas sobre pessoas físicas vai atingir apenas o funcionalismo
público, não os profissionais liberais, jogadores de futebol, artistas." E
por que é tão difícil mudar? "Sabemos onde mexer, mas o financiamento da
política por parte de quem quer manter o sistema como está trava a
discussão", diz Dowbor.
Sem grandes esforços para mexer
nos impostos, a distribuição de renda recente foi obtida, segundo o Ipea, a
partir do aumento dos gastos sociais, a exemplo do Bolsa Família. "O
governo federal conseguiu efeitos distributivos por meio dos gastos, não dos tributos.
Há o risco de o discurso anti-imposto se voltar contra os ganhos dos
investimentos, o que representaria um dano ainda maior", diz Fernando
Gaiger, pesquisador do instituto.
Além de ser o grupo que deixa a
maior parte dos seus rendimentos com o Leão, a população de baixa renda é
aquela que tem mais a perder na hipótese de redução dos impostos. Segundo o
Ipea, em uma carga tributária de 36% do PIB, 15 pontos porcentuais são
redistribuídos à população por meio de serviços públicos. "Se quisermos
uma educação melhor, vamos precisar de mais professores, e a verdade é que
ainda faltam recursos para investir. Os serviços são mais baratos quando
coletivos, mas, se a elite consegue fazer seu mundo à parte, ela não se
preocupa com isso", diz Dowbor.
Há um claro limite para a
expansão dos efeitos de distribuição de renda via aumento de gastos. Se quiser
um dia se tornar um país mais justo, o Brasil terá de inverter a lógica: cobrar
de quem, de fato, pode custear o esforço rumo à civilização. Seria uma
revolução.
Reportagem retirada na Revista Carta Capital, na edição 786, da semana do dia 10/02/2014, disponível no Acervo da Escola.
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