Nossa lei trabalhista está longe
de ser um exemplo de equidade. Para corrigir muitas dessas distorções, tramita
no congresso o PL 879/11 que estende a licença paternidade para 30 dias
Do blog “Feminismo pra quê?”,
vinculado à Carta Capital – 13/08/2013
Enquanto escrevo esse texto, ouço
o chorinho resmungante da minha filha no quarto ao lado. Ela está com o pai,
que a está ninando. Os dias e as noites na nossa casa são assim - enquanto meu
companheiro Gabriel dá banho ou comida, eu trabalho ou faço atividades
pessoais. Enquanto eu amamento e troco uma fralda, ele joga videogame, lava uma
louça ou leva nossa cachorra para passear. Na nossa família o Gabriel não me
ajuda com as tarefas de cuidado relacionadas à nossa casa e à nossa filha. Eu e
ele dividimos as demandas cotidianas de acordo com nossa disponibilidade de
forma equilibrada. A filha é nossa, a casa é nossa.
Porém nem sempre foi assim. Nos
primeiros meses, os cuidados com a Liz eram quase que exclusivamente meus
durante o dia. Minha família mora no Rio de Janeiro e eu em São Paulo e, apesar
da generosidade da minha mãe que passou alguns dias me ensinando a cuidar de um
recém nascido, Gabriel teve apenas cinco dias de licença paternidade. E desde
aquela época eu me perguntava: afinal, se a filha é minha e dele, por que aos olhos da lei eu era a única responsável
por seu bem estar físico e emocional?
Eu sei que o desejo dele era
estar comigo, em casa, aprendendo a cuidar da nossa filha, e aprendendo a
conhecê-la, mas cinco dias depois ele voltava bruscamente para uma rotina de
trabalho de mais de oito horas por dia, viagens e horas extras. Estávamos os
dois sofrendo - eu, sobrecarregada com as novas funções de mãe, e ele, que
gostaria de estar participando mais ativamente desse processo. E por quê?
Porque a nossa lei trabalhista está longe de ser um exemplo de equidade de
gênero. Para corrigir muitas dessas distorções, tramita no congresso o PL
879/11 que estende a licença paternidade para 30 dias. Não é o ideal. Em muitos
países desenvolvidos a licença é parental (como em Noruega, um bom exemplo delicença paternidade), ou seja, os pais recebem um número de dias de licença e
dividem de acordo com as necessidades da família. Mas seria um começo.
Porém o relator da PL, Dep. Júlio
Delgado (PSB-MG), deu um parecer contrário ao aumento da licença paternidade,
usando justificativas que são um show de machismo, ignorância e ideias
essencialistas sobre a questão de gênero. Destaco aqui um trecho:
"Não é possível conceder
licença-paternidade similar à licença maternidade, ainda que ocorra qualquer
uma das situações previstas nas proposições, pois ela jamais proporcionará os
mesmos efeitos à criança, já que por questões fisiológicas a relação entre mãe
e filho é totalmente diferenciada da que ocorre em relação ao pai.
Assim, não é uma questão de
tratamento diferenciado ou de cunho discriminatório, mas a ausência da mãe
jamais pode ser suprida, ainda que pelo pai. Diante da notória diferença
existente entre a figura materna e paterna para a criança, as licenças
maternidade e paternidade não podem ser tratadas da mesma forma, em igualdade
de condições." (Leia o texto integral do relatório do Deputado JúlioDelgado)
Lembrando que, quando o Deputado
fala das situações previstas no PL, estão contempladas a licença para o pai em
caso de óbito materno, nascimento prematuro e bebês nascidos com deficiências
físicas ou mentais. Ou seja, o Deputado não acredita na importância da figura
do pai e da divisão de cuidados nem em casos delicados, mas vamos nos ater aos
casos de nascimentos normais, sem intercorrências ou qualquer outra
consequência além do nascimento do bebê: o que o Deputado Júlio não sabe ou
finge não saber é que biologia e fisiologia não são destino nem fatalidade.
As mulheres possuem o direito de
dispor do próprio corpo mesmo após parir um filho. E as mulheres que desejam
fugir das alarmantes estatísticas de amamentação do Brasil e amamentar no peito
como recomenda o Ministério da Saúde (seis meses de exclusividade e permanecer
amamentando até dois anos ou mais) - precisam de apoio constante da família e
da sociedade para cuidar do bebê - pai incluso. Ser homem não é um selo
incapacitante das tarefas de cuidado.
E se o deputado gosta de usar
justificativas biológicas para embasar seus argumentos, deveria pesquisar mais
- segundo as mais recentes evidências científicas, assim como a mulher, homens
passam por diversas mudanças fisiológicas com o nascimento do bebê. A principal
delas é a brusca diminuição da testosterona, logo nas primeiras horas após o
nascimento, o que nada mais é que uma estratégia evolutiva para que os machos
se envolvam nos cuidados com a cria. No texto integral, ele ainda cita que o
homem deve voltar logo ao trabalho para manter sua "satisfação
pessoal". Esse parágrafo é incomentável - como se apenas os homens
pudessem ser provedores da família e como se trabalho não pudesse trazer
satisfação pessoal para uma mulher que é mãe.
Ao criar uma falsa dicotomia
entre as tarefas que podem ser desempenhadas por homens e mulheres, o relator
da PL 879/11 reforça estereótipos de gênero, anula o homem e mina a importância
da figura paterna, reforçando a ideia errônea e preconceituosa que tarefas
relacionadas ao cuidado de bebês e crianças devem ser apenas da mulher e que a
mãe deve arcar sozinha com essa missão, sendo "moldada naturalmente para
isso".
Infelizmente esse tipo de parecer
não é vantajoso para pais, mães ou filhos. É vantajoso apenas para o machismo,
que continua a preterir as mulheres em idade fértil no mercado de trabalho e
para desresponsabilização da iniciativa privada de dividir com o estado o ônus
financeiro de aumentar e igualar a licença paternidade à licença maternidade ou
da criação de uma justa licença parental.
Agora que termino esse texto,
minha filha finalmente dorme nos braços de um pai que não tem medo algum de
exercer a tarefa, mesmo sem contar com apoio do Estado, mas contando com o
apoio de uma família feminista pronta para lutar por mudanças necessárias. Para
que a nossa filha possa crescer num mundo onde a igualdade de gênero não seja
apenas uma utopia, mas a tediosa realidade de todas as famílias brasileiras.
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