Do Brasil de Fato – 01/08/2013
Aqueles que, visitando a África
do Sul, desejem compreender os acontecimentos que distinguiram a dramática
história deste país não podem prescindir do museu do apartheid. Situado a
poucos quilômetros do centro de Johanesburgo, representa um dos lugares mais
significativos para empreender uma viagem ao passado de um dos piores casos de
colonialismo europeu e, ao mesmo tempo, de racismo do século XX.
A atmosfera festiva que se
respira no exterior, pela presença de estudantes que, entre doces cânticos e
doces sorrisos, antes de entrar se disponibilizam numa fila de indumentárias e
mochilas coloridas, cessa bruscamente na porta de acesso. Ao museu não se vai
em grupo. Os visitantes, estudantes ou membros de famílias são separados um por
um em função do número do bilhete comprado e antes de se reagruparem junto a
uma fotografia de Nelson Mandela reviverão a tragédia da segregação. Os
visitantes com números pares entram pelo acesso reservado aos “brancos”,
daqueles de quem são recordados os inúmeros privilégios gozados e as
atrocidades cometidas no curso da visita; enquanto isso, os ímpares, no
corredor contíguo, recorrem o trajeto da brutalidade sofrida pelos negros e
mestiços. Na parte inicial do museu, todos seguem o mesmo percurso, sendo possível
se olhar e caminhar juntos algumas vezes, mas estão sempre separados por uma
grelha fria de metal; não se tocam nunca e atravessam relatos, documentos e
experiências de vida completamente distintas.
Racismo
e apartheid
A colonização européia começou em
1486, ano em que o navegante português Bartolomeu Dias superou o extremo
meridional da África. Em 1652, alguns pioneiros holandeses de doutrina
calvinista, dedicados à agricultura e por isso chamados de Boers (camponeses),
construíram um primeiro assentamento como escala dos navios da Companhia
Holandesa das Índias Orientais, que futuramente se tornaria a Cidade do Cabo,
ou Capetown.
No início do século XVIII,
começaram a se chamar de Afrikaners para se distinguirem dos colonizadores
ingleses chegados depois deles; mas o acontecimento que sacudiu a história
desta terra foi o descobrimento, em 1887, das incríveis riquezas de seu
subsolo. E em poucos anos, tudo mudou: antes de acabar o século XIX, se
produzia na África do Sul um quarto do ouro de todo o mundo e a fama dos seus
diamantes preciosos não era menor. O racismo foi um elemento essencial da
cultura da população de origem européia e até o Partido Comunista (CPSA), em
1922, chamou os mineiros à luta “por uma África do Sulbranca e socialista”.
Em abril de 1994, as televisões
do mundo todo mostraram intermináveis fileiras de sul-africanos que, durante
horas, com paciência e orgulho, esperavam um momento largamente aguardado: o
primeiro voto e o fim da segregação racial. Passados vinte anos pode-se afirmar
que as expectativas daqueles milhões de mulheres e homens foram descumpridas. A
luta por um país verdadeiramente democrático foi truncada pelas políticas
neoliberais adotadas pelo African National Congress (ANC). O massacre brutal de
Marikana, em agosto de 2012, tão similar às matanças dos tempos de apartheid,
onde perderam a vida 47 mineiros em greve pelo aumento salarial (apenas 250
euros por mês depois de 18 anos de democracia) representa perfeitamente os
paradoxos desta nação.
Frente à extraordinária
concentração de riqueza existente – um estudo recente da Citigroup afirma que a
África do Sul possui ainda hoje o subsolo mais rico do planeta, estimando o
valor das suas reservas minerais em mais de 2,5 trilhões de dólares – no
período pós-guerra este país se destacava, excluindo a população de origem
européia, pelo índice de mortalidade mais alto do mundo. Mais da metade da
população de origem africana vivia confinada nos Bantustan (que cobriam apenas
13% da superfície), onde o poder branco relegou – e às vezes deportou – as
populações locais segundo sua etnia de procedência; a outra metade habitava os
township, aglomerações de barracas que faziam fronteira com as cidades dos
“brancos”, onde se amontoava, sem qualquer direito civil, a força de trabalho
negra que sustentava a economia nacional. Nestas zonas, a miséria extrema.
Sapatos somente chegaram em 1979, e graças à ajuda da Cruz Vermelha.
Apesar da resolução que condena
as políticas do apartheid, votada na ONU em 1962, o veto imposto à moção de
1974 por Inglaterra, França e Estados Unidos, potências que se beneficiavam das
exportações na África do Sul, impediu a expulsão do país das Nações Unidas.
Deste modo, pela rota do Cabo da Boa Esperança, seguiram transportando mais de
20% do petróleo consumido nos EUA e 70% das matérias-primas estratégicas
(especialmente platina, cromo e manganês) para a Europa ocidental, seguiram
navegando mais de 2000 barcos por ano e as débeis sanções econômicas aplicadas
não melaram em absoluto a economia e o regime do Partido Nacional (National
Party).
Pobreza
e neoliberalismo
No momento dos acordos de paz que
seguiram a extraordinária luta de libertação, a África do Sul era um país
profundamente dividido. A renda per capita da população de origem européia era
a sétima mais alta do mundo, enquanto que a da gente africana a centésima
vigésima. Com a massificação das cidades por parte da multidão de africanos
liberados dos sórdidos guetos da segregação, os “brancos” começaram a
transferir-se a bairros residenciais longe dos centros das cidades, onde ainda
hoje vivem entrincheirados em luxuosíssimas casas, uma mescla de vilas de
estilo hollywoodiano e fortalezas rodeadas de arame farpado, cercas elétricas e
guardas privados armados.
Nos primeiros quinze anos de liberdade,
junto à figura carismática e internacionalmente conhecida de Mandela,
destacou-se a de Thabo Mbeki. Vice-presidente do primeiro quinquênio e depois à
frente da “nação arco-íris” até 2008, foi Mbeki quem definiu os desígnios
econômicos do país.
Em 1994, a Alliance, coalizão
eleitoral composta pelo ANC, CPSA e o COSATU, a principal e mais combativa
federação sindical sul-africana com mais de 1,8 milhão de inscritos, pôs em
marcha o Programa de Reconstrução e Desenvolvimento (RDP), um conjunto de medidas
com a finalidade de criar serviços básicos, ocupação, moradia e reforma da
propriedade de terra. Entretanto, dois anos depois o RDP foi substituído por um
novo plano estratégico para o Crescimento, Emprego e Redistribuição (GEAR) que
deveria permitir, segundo promessas de Mandela e Mbeki, a chegada de
investimentos estrangeiros e, portanto, o bem-estar geral. Na realidade, com o
GEAR, na África do Sul chegaram o neoliberalismo e seus efeitos devastadores.
Após haver aceitado pagar a
dívida pública (25 bilhões de dólares) acumulada durante a era do apartheid,
para o que foi necessário solicitar um crédito ao Fundo Monetário Internacional
e, portanto, submeter-se às suas receitas econômicas, com o GEAR, a África do
Sul iniciou uma temporada de privatizações massivas, de liberalização dos
intercâmbios para facilitar a importação de mercadorias a baixíssimo custo; de
grandes cortes de gastos públicos, acompanhados de enormes reduções fiscais a
todas as grandes empresas (cujas cargas fiscais descenderam de 48% em 1994 aos
atuais 30%); e da desregulamentação do mercado.
Apesar das promessas de maior
eficiência, de criação de novos postos de trabalho e conseguinte redução da
pobreza, estas medidas comportaram o aumento dos preços da eletricidade, água e
transporte; o barateamento dos salários e a flexibilização laboral; os cortes
no setor público, sobretudo saneamento básico, educação e moradia; e a
deterioração da situação ambiental, com a enorme emissão de CO2 devido à
quantidade de eletricidade fornecida às multinacionais pelo preço mais baixo do
mundo; e, em definitiva, a financeirização da economia com um crescimento sem
criação de postos de trabalho (segundo o Economist, a África do Sul é o mercado
emergente mais vulnerável). Qualquer análise séria da atual situação
socioeconômica da África do Sul não pode prescindir de uma rigorosa reflexão a
respeito do GEAR e das suas nefastas consequências.
Junto a esta “primeira economia”,
cada vez mais integrada no mercado global e vinculada aos setores mineiros e
financeiros, se desenvolveu uma “segunda”, marginal e similar às receitas
econômicas do Nobel Muhammad Yunnus. Mediante a “milagrosa” transformação dos
pobres em pequenos empreendedores e mediante a sedutora ilusão de que os
microcréditos eram a possível panacéia de todos os males, esta “segunda”
economia contribuiu, também na África do Sul, a uma despolitização da pobreza e
permitiu a penetração do mercado em âmbitos de relações sociais até então não
mercantilizados. Por outro lado, a “tecnocratização” da questão social é a
anulação das suas causas econômicas e políticas, um fenômeno hoje cada vez mais
difundido.
Mbeki guiou esta transformação utilizando
uma retórica de esquerda com pitadas de nacionalismo africano. Não por acaso,
sua política foi definida como “Talk left, walk right”, isto é, falar como a
esquerda e caminhar em direção à direita. Abordagem que não se distanciou do
dito por Jacob Zuma, o atual presidente da África do Sul que, apesar de haver
sido eleito em 2009 por sua ênfase em estar situado à esquerda do ANC, traiu as
expectativas de mudança auspiciadas pelo COSATU e se distinguiu por uma clara
continuidade do que havia sido feito antes.
Uma
advertência para a esquerda
A conquista dos direitos
políticos foi um resultado importantíssimo que não pode ser subestimado, menos
ainda em um país com a história dramática da África do Sul. Contudo, a mudança
prometida pela Alliance não abordou a questão social. De fato, o ANC retirou o
tema da redistribuição da riqueza de sua agenda e, a respeito de 1994, as
desigualdades só aumentaram (naquele tempo, o salário de um trabalhador negro
correspondia a 13,5% do salário de um trabalhador branco; hoje a relação caiu
para 13%). O aumento do descontentamento social nas áreas urbanas indica que a
“guerra à pobreza”, declarada pelo governo em 2008, também foi perdida.
O número de desempregados é
superior a um quarto da força de trabalho do país – maior que durante os tempos
do apartheid – e a porcentagem de desemprego seria superior a 30% se na
estimativa forem inclusos os discouraged workers, aqueles que deixaram de
buscar trabalho. Meio milhão de postos de trabalho foram precarizados e tiveram
seus salários reduzidos, enquanto que muitos dos novos postos estão pagando
menos de 20 euros por mês. Este dramático quadro piorou com os efeitos da
crise, causada pela bolha imobiliária (diz respeito ao final do século passado
em que os preços haviam aumentado 389%); pelo decrescimento no setores mineiros
e manufatureiros, devido à forte redução da demanda global; pela queda dos
investimentos; e pela perda de um milhão de postos de trabalho só durante o ano
de 2009.
Na “nova África do Sul”, as
injustiças herdadas do regime segregacionista só aumentaram. O nascimento de
uma burguesia “negra” politicamente influente, mas economicamente frágil, em
suma, de outra elite predatória junto à já existente, enriqueceu um grupo de
homens ligados ao ANC, mas certamente não mudou as condições do povo
sul-africano. O apartheid racial se transformou em apartheid de classe, termo
hoje em dia fora de moda, mas sempre atual, e o fracasso da Alliance é uma
advertência para todas as esquerdas do
mundo. Explica que também os partidos políticos de grande tradição,
especialmente quando são forças governantes, acabam traindo os princípios
reformistas, se extraviam de sua própria raiz social e deixam de ser
sustentados por movimentos de massa. Uma vez mais, é daqui, e também aprendendo
com a África do Sul, de onde devemos voltar a começar.
Marcello
Musto é
sociólogo e filósofo italiano, professor de Teoria Política da Universidade de
York (Toronto).
Da edição de 1º a 07 de agosto de
201. Confira no acervo da escola.
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