Do Brasil de Fato – 01/08/2013
Homens sem roupas, agredidos e
abandonados à própria sorte. Esse foi o cenário encontrado pela Defensoria
Pública do Mato Grosso na cadeia pública de Campo Novo do Parecis, a 397
quilômetros de Cuiabá. A denúncia partiu do pai de um dos presos e levou a
defensora pública Jacqueline Gevizier Nunes Rodrigues até o local.
Na cadeia, ela se deparou com
quatro presos em uma cela de isolamento sem qualquer tipo de iluminação.
Jogados sobre dois colchões, os detentos apresentavam marcas de uso de gás de
pimenta nos olhos e em parte dos corpos.
A história ocorreu em maio deste
ano e ganhou repercussão nacional. Longe de ser um caso isolado, o episódio
escancarou uma realidade antiga e comum no Brasil, a prática de tortura contra
pessoas em situação de cárcere. Preocupação antiga de entidades de direitos
humanos, a luta contra a tortura pode ganhar um reforço importante.
Em 11 de julho, o Senado aprovou
o Projeto de Lei Complementar 11/2013, que institui o Sistema Nacional de
Prevenção e Combate à Tortura (SNPCT). A matéria, agora, aguarda sanção da
presidenta Dilma Rousseff, que tem até 2 de agosto para analisar o texto.
A criação do sistema é esperada
desde 2007, quando o país ratificou o Protocolo Facultativo à Convenção da
Organização das Nações Unidas, que representa o compromisso brasileiro com a
construção de uma política nacional para a erradicação da tortura.
De acordo com o PLC, proposto
pelo Executivo, o Sistema será composto por duas instâncias básicas: o Comitê
de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT), integrado pelo governo federal e por
representantes de organizações da sociedade civil indicados pela Presidência da
República, e pelo Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), que terá
11 peritos indicados por esse Comitê.
A implantação dos mecanismos é aguardada
com expectativa. Para o assessor jurídico da Pastoral Carcerária e integrante
do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, José de Jesus Filho, as
novas instâncias representam um passo importante para dar fim às torturas.
“Acreditamos que a atuação do mecanismo vai reduzir significativamente a
prática da tortura no país”, afirma.
Os peritos terão acesso livre,
sem necessidade de aviso prévio, a toda e qualquer instituição fechada –
centros de detenção, estabelecimentos penais, hospitais psiquiátricos,
instituições de longa permanência para idosos, instituições socioeducativas
para adolescentes em conflito com a lei e centros militares de detenção
disciplinar.
Um dos aspectos mais importantes,
para José de Jesus Filho, é a imunidade dos peritos. Durante seus três anos de
mandato eles não poderão ser afastados sem a instauração de um procedimento
administrativo e penal.
“Essa garantia vai permitir que
os membros do mecanismo possam elaborar relatórios, entrar em diálogo com
autoridades e fazer declarações públicas sobre a tortura sem que sofram
retaliação”, explica. Só em 2013, a Secretaria Nacional de Direitos Humanos
recebeu 466 denúncias de tortura contra a população carcerária. Segundo a
coordenadora de Sistemas de Justiça e Segurança Pública do instituto Sou da
Paz, Carolina Ricardo, a tortura costuma ser usada para contenção de presos e,
principalmente, para a obtenção de confissões. Para ela, o sistema de combate e
prevenção servirá para coibir esses casos. “Ter um projeto como esse aprovado é
um sinal muito claro de que a tortura deixará de ser tolerada”, enfatiza.
De acordo com o Relatório sobre
tortura – uma experiência de monitoramento dos locais de detenção para
prevenção da tortura, elaborado pela Pastoral Carcerária, de 211 casos de
tortura acompanhados pela entidade entre 1997 e 2009, 51 envolviam mais de uma
autoridade, como policiais, diretores de unidades, agentes penitenciários ou
delegados.
Fiscalização
Uma das principais contribuições
do sistema, na avaliação do advogado e coordenador do Programa de Justiça da
Conectas, Rafael Custódio, será dar maior visibilidade às questões do sistema
penitenciário do país, marcado por falta de transparência e de controle por
parte da sociedade.
“Esse sistema novo vem com a
esperança de ser uma autoridade nacional, com especialistas, dinheiro,
estrutura e vontade política para mexer nesse tema”, observa.
Com a implantação do mecanismo, o
que se espera é o início de uma fiscalização mais efetiva nas unidades
prisionais. Custódio lembra que o monitoramento dos estabelecimentos penais
deveria ser feito permanentemente por promotores, defensores públicos e juízes,
mas na prática não é o que acontece.
“Se você perguntar aos presos ‘já
veio aqui algum juiz ou promotor?’, eles vão dizer que não. Essas pessoas são
completamente abandonadas, principalmente nos presídios longe dos centros
urbanos”, ressalta.
Com a negligência do Estado, o
trabalho de coletar denúncias é feito, muitas vezes, por organizações de
direitos humanos. Falta a elas, porém, estrutura e prerrogativas legais para
acompanhar os casos mais de perto.
“As entidades que acompanham os
presos conseguem eventualmente fazer uma análise, mas é sempre muito difícil
[constatar as torturas]”, diz Carolina Ricardo. “Com a lei, a expectativa é de
que isso se torne mais sistemático”, completa.
A assinatura do Protocolo da ONU,
em 2007, também previa a criação de comitês estaduais de prevenção e combate a
esse tipo de crime. Seis anos depois, apenas 16 estados possuem formalmente
seus próprios mecanismos.
Para Custódio, a aprovação do PLC
será a oportunidade para pressionar a implantação de comitês em todos os
estados, principalmente em São Paulo, que concentra um terço da população
carcerária brasileira. “Apresentamos uma proposta para a Secretaria de Justiça,
mas eles têm deixado a gente em banho-maria”, comenta.
Sanção
A espera agora é pela aprovação
de Dilma Rousseff ao projeto de lei. O assessor jurídico da Pastoral Carcerária
acredita que a presidenta sancionará o texto. Ele teme, porém, mudanças no
conteúdo.
“O grande risco é que a
presidenta não respeite as recomendações da sociedade civil e retire a
independência do mecanismo”, aponta José de Jesus Filho.
Para Carolina Ricardo, o passado
de Dilma pode influenciá-la a aprovar o texto sem fazer alterações.
“Considerando que a presidenta durante a época da ditadura foi vítima de
tortura, esperamos que ela seja sensível ao tema e capaz de sancioná-lo na
íntegra”, analisa.
A sanção, no entanto, significa
apenas uma etapa. A próxima, de acordo com Rafael Custódio, é batalhar pela
efetivação do sistema. “O Brasil está dando um passo muito importante no
combate à tortura e agora tem que exigir a efetiva implementação e o
cumprimento das regras. É um sistema que depende muito da pressão da sociedade civil
para que funcione”, destaca.
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