Da Revista Cult –
Março/2013
No famoso conto
“O veredicto”, de Franz Kafka, o pai afirma ao filho após uma briga cheia das
mais estranhas acusações: “Você está condenado à morte por afogamento”. O filho
se dirige à ponte e se atira à água, mostrando que é impossível superar a
sentença paterna. O pai e a sentença são metáfora da Lei, em si mesma
inescapável. Não há para onde fugir quando se é condenado à morte.
A sentença
kafkiana pode ser adaptada às circunstâncias históricas e sociais do Brasil
atual: “você está condenado à morte por negligência”.
O clichê de que
o Brasil é o país do “jeitinho” e, mais recentemente, da “gambiarra” acoberta o
fato infinitamente mais perturbador da “negligência” elevada a Razão de Estado.
A teoria da Razão de Estado se refere aos usos e abusos que governantes fazem
da Lei em nome da “segurança” do Estado. Ocorre que, em nosso país, a corrupção
tornou-se essa espécie de lei, a maior de todas, porque todos (políticos e
cidadãos comuns) se fazem soberanos para praticá-la. No mesmo país, o Estado
foi reduzido a algo como um “prostíbulo”, um espaço em que a lei é a da
exceção, ou do “fora-da-lei” legalizado.
Neste quadro
geral, persiste, no entanto, a “cultura” como o modo de vida que desenvolvemos
e repetimos diariamente enquanto somos uma sociedade. Certamente poderíamos
questionar se ainda nos autorrepresentamos como “sociedade”, mas não há espaço
neste artigo para isso. Já quando falamos de “país” não estamos meramente
generalizando, mas referindo-nos às condições da cultura partilhada por todos,
cuja complexidade da conta a ser paga o será por todos e cada um.
Negligência e catástrofe
É neste cenário
que é preciso introduzir a triste questão da negligência como característica da
cultura contemporânea brasileira. Em seu significado essencial, ser negligente
significa não saber ler. Descuido e desatenção derivam de que, na origem, quem
não sabe ler não poderá ler justamente a Lei que se dá a conhecer aos cidadãos
sempre por escrito. Alegar desconhecimento da lei é, portanto, desconhecer que
sua implacabilidade pressupõe o saber acerca de si. Diante da Lei ninguém é
analfabeto.
A negligência é
a forma de ser do tonto. Nova conduta autorizada a ocupar a instância simbólica
da Lei. Em nível de cultura, é como se estivéssemos todos autorizados à
negligência, a não saber ler. Em resumo, a fazermo-nos de bobos não entendendo
como as coisas deveriam ser feitas para o bem de todos.
Ao mesmo tempo,
em situações de catástrofe, a cultura da negligência espera que haja punidos
individualmente. Se a Razão de Estado está em cena sustentando o Estado, nada
melhor que haver um único culpado em situações de catástrofe. Se lembrarmos de
crimes como o assassinato de Eloá por Lindemberg, da tragédia do Realengo e,
por fim, o caso do da boate Kiss de Santa Maria transformada em campo de
extermínio em janeiro deste ano, veremos que os poderes instaurados em torno do
Estado se esforçam por acusar um indivíduo – ele mesmo culpado, é verdade, mas
não o único culpado, não a origem de todo o mal que salva o Estado – e
instituições em geral, como, por exemplo, a mídia, em sua responsabilidade com
a sociedade. Na cultura da negligência não há esmero em “ler” melhor o livro da
sociedade que ajudamos a escrever todos os dias.
Seria fácil
repetir o clichê de que “a culpa é do governo”, mas o clichê acobertaria o fato
político mais profundo dos interesses individuais da classe governamental
contra o povo. O fato biopolítico de que estamos todos condenados à morte, seja
por falta de políticas para a educação, a saúde, o trabalho, é mais do que
evidente. Como dizia Kafka no texto da Colônia penal, não é preciso conhecer a
sentença a qual se é condenado porque ela será inscrita na própria pele. O
analfabetismo político é a grande boca que pronuncia essa sentença.
MARCIA TIBURI
http://revistacult.uol.com.br/home/2013/03/cultura-da-negligencia/
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