Da Rede Brasil Atual – 13/07/2013
Discussão sobre a
desmilitarização volta a ganhar força depois de violências explícitas nas
manifestações do último mês. Especialistas apontam que mais que tirar fardas é
preciso mudar estruturas
São Paulo – Há anos grupos que
lutam contra a violência policial exigem mudanças em meio a crimes com
comprovada e presumida participação de funcionários públicos que deveriam
garantir a segurança, e não humilhar, agredir e matar. Em meio às manifestações
que tomaram o país no último mês, o uso desproporcional da força de policiais
de vários estados reaqueceu o debate. Diversos movimentos sociais centrados em
outras pautas passaram a colocar como uma das prioridades para o país a
desmilitarização das polícias estaduais.
As imagens de policiais atirando
gás e balas de borracha contra pessoas paradas, jornalistas trabalhando e
manifestantes desarmados foi um dos motores que impulsionaram a multiplicação
de ativistas em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Mas o problema é
antigo e tem causado danos irreparáveis. Em maio do ano passado, a Dinamarca
chegou a recomendar que o Brasil extinguisse a Polícia Militar no Conselho de
Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) que exigiu mais esforços
do país para acabar com grupos de extermínio formados por policiais.
A questão vai muito além de uma
mudança de nome, de roupa e da forma de chamar o policial. A rígida estrutura a
que são submetidos os PMs tem consequências negativas para eles mesmos e para o
resto da sociedade, afirmam especialistas.
Proibidos de reivindicar melhores
salários e de se organizarem em sindicatos, são impedidos de acessar garantias
trabalhistas, além de terem seus direitos humanos constantemente desrespeitados
com amparo em códigos de conduta. “Segundo uma pesquisa que fizemos
recentemente, muitos regulamentos disciplinares são inconstitucionais e
extremamente autoritários. É difícil esperar uma polícia que trate o cidadão
como tal quando ele foi tratado no quartel de modo autoritário”, afirma o
sociólogo e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),
Ignácio Cano. Para ele, a manutenção dessas normas interessa aos oficiais
militares, e não aos soldados de patente inferior. “Os praças não têm nada contra
a desmilitarização, até porque acham que vão receber melhor como servidores
civis do que como servidores militares”, afirma.
O professor e cientista político
Guaracy Mingardi lembra que a polícia como a conhecemos hoje é fruto de uma
exigência dos militares que comandaram o país depois de um golpe entre 1964 e
1985 para aumentar seu controle. Antes disso, afirma o professor, as diversas
forças de segurança civil não eram “nem melhores nem piores”, mas o que fica
evidente é que pouco mudaram desde a redemocratização.
“O problema da força pública
antes disso é que ela era, até mil novecentos e trinta e pouco, uma espécie de
Exército. Mesmo depois, entre os anos 1930 e 1940. Só aos poucos foi entrando
policiamento, porque a maior parte ficava aquartelada. A ideia de desaquartelar
é dos anos 1980”, explica. “A saúde pública melhorou, a educação pode estar uma
porcaria, mas melhorou. Pelo menos atende a todo mundo. Mas a segurança, que
nunca foi uma maravilha, não melhorou”, aponta Mingardi.
Para o professor, é fundamental a
extinção da Inspetoria Geral das Polícias Militares (IGPM), órgão do Exército
que coordena as polícias militares de todo o país e da Justiça Militar. “Para
os oficiais, é um privilégio, ele é sempre bem tratado. Já para os soldados é
ruim. Tem muitas coisas que caem lá que têm peso militar; o sujeito é julgado
como se estivesse no exército.”
A lógica de submissão a um código
de conduta próprio seria a responsável pela visão do cidadão comum como um
inimigo, a quem desmandos sofridos poderiam ser transmitidos sem consequências.
“Há um ditado entre os PMs que é: 'Paisano é bom, mas tem muito'”, conta
Mingardi. “Isso explicita que eles se veem de forma diferente do resto da
sociedade”, argumenta.
“Na década de 1980, já tivemos
coronéis falando assim: 'o suspeito típico é mulato, tem entre 18 e 22 anos, se
veste de tal maneira'. Ou seja, caracteriza o sujeito. De qualquer forma, é
mais fácil um civil se ver como parte da sociedade do que o militar. Uma parte
da sociedade também vê assim, mas, quem passa, quem atua nisso é a polícia”,
diz.
Para a diretora-executiva da
Conectas Direitos Humanos, Lucia Nader, a polícia não recebe um treinamento
diferente para brancos e negros, estes últimos alvos principais da violência
policial. A atuação diferenciada seria fruto de uma “cultura de discriminação”
disseminada pela sociedade e amparada por outras disparidades sociais. “Se hoje
um guarda militar me para e viola meus direitos, eu sei muito bem o que fazer,
a quem recorrer e como denunciar. E ele vai pensar duas vezes antes de fazer
isso. Se ele fizer no Jardim Ângela (zona sul de São Paulo), a situação é um
pouco diferente. É muito uma coisa de como a população tem acesso à Justiça, é
ciente dos seus direitos e tem mecanismos confiáveis de denúncia”, argumenta.
Lucia acredita que a Polícia
Militar é uma das poucas instituições que não passaram por um processo de
redemocratização após a saída dos militares do poder. “Sem dúvida, tem muitos
problemas na polícia e um deles é a questão da referência à ditadura, que vai
desde o nome até uma série de estruturas e ligações com o Exército, mas na
nossa opinião é mais profundo do que isso”, diz, em consonância com os outros
especialistas.
Para eles, é mais importante
mudar os preceitos e romper com estruturas formais da Polícia Militar do que
desmilitarizá-los. “Podemos ter uma polícia desmilitarizada e continuar tendo
uma polícia altamente violenta, com altas taxas de letalidade, como a polícia é
hoje”, afirma Lucia. Ela sintetiza as mudança em cinco ações: valorização dos
profissionais, fortalecimento da ação investigativa, responsabilização pelos
abusos cometidos, recolocação da polícia como serviço público e maior controle
sobre o uso da força. “Como e quando ela faz uso da força tem que ser
regulamentado e de uma maneira restrita e proporcional à ameaça apresentada”,
afirma.
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