Da Rede Brasil Atual – 14/07/2013
São Paulo – Diante de uma suposta
dificuldade no processo de aprendizagem é cada vez mais comum profissionais de
educação logo aventarem a possibilidade de um problema orgânico. E sem sequer
refletir sobre outros aspectos relacionados à própria prática pedagógica, à
escola ou mesmo a outros fatores, inclusive familiares, recomendam que os pais
procurem ajuda de especialistas, como fonoaudiólogos, psicólogos,
psicopedagogos e psiquiatras, entre tantos outros. Não demora e a criança é
submetida a exames e mais exames – isso quando já não sai da primeira consulta
com um diagnóstico de um distúrbio qualquer e nas mãos uma receita de
medicamentos capazes de ajudá-la a manter sob controle distúrbios que estariam
dificultando o aprendizado.
Assim é o chamado fenômeno da
medicalização da educação e da sociedade, processo que transforma em distúrbios
a serem tratados com terapias e medicamentos questões inerentes à vida social,
como emoções, sentimentos e comportamentos que não são aceitos socialmente. Ou
seja, comportamentos diferentes do padrão imposto pela sociedade acabam
transformados indiscriminadamente em doença passível de medicação e de acompanhamento
excessivo com psicólogos, fonoaudiólogos e outros profissionais. É o caso do
transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), que tem sido cada
vez mais diagnosticado no Brasil. Ao mesmo tempo em que aumentaram os
diagnósticos, cresceu a prescrição de medicamentos como o metilfenidato, com o
nome comercial de Ritalina, ainda sem estudos suficientes sobre os efeitos
nocivos de seu uso prolongado.
Preocupados com o crescente
fenômeno, especialistas brasileiros, argentinos, chilenos, cubanos e espanhóis,
entre outras nacionalidades, reúnem-se no 3º Seminário Internacional A Educação
Medicalizada: Reconhecer e acolher as diferenças. Organizado pelo Fórum sobre
Medicalização da Educação e da Sociedade, o evento que começou na noite da última
quarta-feira (10) e terminou ontem (13), na capital paulista, contesta a
criação de pretensos transtornos que justificariam diferentes comportamentos,
questionamentos e ritmos de aprendizagem, além de discutir a crescente
judicialização e criminalização das relações sociais.
"Esse fenômeno social é
importante porque atinge a sociedade como um todo, de maneira contundente. Leva
ao uso excessivo de remédios e terapias, transforma sofrimentos e dificuldades
em doenças e a vida das pessoas em produtos; é uma máquina de consumo, de
controle", disse o presidente do Sindicato dos Psicólogos de São Paulo
(Sinpsi), Rogério Giannini, que participou da organização do seminário.
Em sua participação no debate
sobre patologização, judicialização e criminalização da vida e da política, a
juíza Dora Martins, da Vara da Infância e Juventude do Fórum Central João
Mendes, em São Paulo, criticou a falta de um olhar individualizado e
reabilitador às crianças moradoras de abrigos, que geralmente recebem
medicamentos para controlar comportamentos agressivos quando deveriam receber
tratamento adequado para as angústias e sofrimentos que provocam tais
comportamentos.
"Quem nunca ficou em abrigos
não pode imaginar o que é morar com mais de vinte pessoas no mesmo espaço, sem
pai nem mãe. Algumas crianças até se conformam, outras se rebelam, reclamam,
berram, choram, brigam e são medicadas para se comportarem. Estigmatizadas,
dificilmente conseguem ser adotadas porque tomam um monte de medicamento",
disse a juíza. Ela lembrou de um menino que cresceu em abrigos. Considerado o
terror dos abrigos por onde passava, recebia muitos remédios para controlar seu
comportamento agressivo. Aos 7 anos, teve a sorte de ser adotado por uma médica
que o levou para morar no exterior e aos poucos foi retirando a medicação.
"Hoje o menino está ótimo, tranquilo, extremamente sociável, normal. É o
que acontece quando em vez de medicamentos desnecessários a criança recebe
afeto e atenção".
A presidente do Grupo Tortura
Nunca Mais do Rio de Janeiro e psicóloga Cecília Coimbra destacou que a
medicalização é uma das técnicas praticadas pelos estados modernos para
subjugar e controlar as populações, o chamado biopoder. "A escola, a
família, o trabalho impõem determinadas ideias e modos de estar no mundo e de viver
como se fossem únicos e verdadeiros, mas que na verdade interessam ao sistema
econômico capitalista no qual vivemos. E acabamos vendo isso como
natural."
A médica Mariana Arantes Nasser,
do Centro de Saúde Samuel Barnsley Pessoa, ligado à USP, a psicóloga Lúcia
Masini, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, e Marilda
Nogueira de Almeida, do Instituto Sedes Sapientiae, apresentaram conceitos e
práticas não medicalizantes na educação e na saúde. Elas integram o grupo de
trabalho Educação e Saúde do Fórum, que lançou a primeira edição revista de
suas recomendações de práticas não medicalizantes para profissionais e serviços
de educação e saúde.
Entre as recomendações estão a
inclusão de toda a comunidade no projeto pedagógico da escola, a discussão de
iniciativas e estratégias que deram certo e levantamento de temas sobre os
quais os alunos querem aprender e a investigação apurada das queixas relativas
ao mau comportamento e dificuldades de concentração.
"A medicalização na educação
é importante porque é lá que a sociedade se reproduz. E ao se responsabilizar o
aluno, e não o sistema pelas dificuldades, a questão acaba nos serviços de
saúde", disse Mariana Nasser.
Apesar do título, o documento
escrito em linguagem simples e acessível por educadores, psicólogos,
psicopedagogos, fonoaudiólogos, médicos e antropólogos é útil também para
orientar pais e demais pessoas interessadas no assunto. O documento pode ser acessado no site do
Fórum sobre medicalização da educação e da sociedade.
Participam ainda do grupo de
trabalho representantes do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina
da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), de Psicologia Clínica da
Universidade Estadual Julio de Mesquita Filho (Unesp), Grupo Interinstitucional
Queixa Escolar, Associação Palavra Criativa e Rede HumanizaSUS, entre outras
entidades.
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