terça-feira, 2 de julho de 2013

Fica a dica

As formas de poder dentro de ensaio sobre a lucidez – Jose Saramago

Do blog Literatortura – 22/06/2013

Nota do editor Gustavo Magnani:
Este texto estava guardado para ser postado mais tarde, porém, devido aos acontecimentos recentes no Brasil, decidimos adiantá-lo. Não existe nenhum paralelo direto com os casos aqui feitos, porém, essas ligações podem ser feitas (ou não) mentalmente. Por obviedade, o texto não tem o objetivo de discutir a causa brasileira, mas de falar do livro. E assim, a discussão fica, repito, para o leitor. Achamos apenas interessante publicá-lo por hora. Obrigado.

 Se a lucidez tivesse uma cor, qual seria? Para o escritor português José Saramago, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1998, a lucidez é branca. No entanto, ela não é branca como as nuvens de um dia cinzento, ou como o rosto de um garotinho pálido e faminto, nem como uma moça maquiada em excesso, pronta para uma festa. A brancura ou brancosidade da lucidez também não é como aquela outra que se encontra em Ensaio Sobre a Cegueira, uma espécie de transparência leitosa que toma as vistas de todos de uma capital, gerando medo, desespero e caos social. A brancura da lucidez de Saramago é sábia, sagrada, essencial e, me parece, impossível para esse mundo de trevas em que vivemos.
Ensaio Sobre a Lucidez, publicado pela primeira vez em 2004, é sobre a capital de um país que, no dia das eleições, grande parte da população resolve não sair para votar, por conta de uma chuva. Quando o desespero já se fazia latente pela cúpula do governo, as pessoas saem todas para as sedes eleitorais, mas o resultado surpreende: a grande maioria dos votos é em branco. Sem a validação do resultado, outra eleição é marcada para a semana seguinte. De novo, outra surpresa: 83% da população vota em branco. E agora? O que fazer? Como o resultado é democrático, mas impede a manutenção de um modelo de democracia, o governo e os membros dos partidos se veem sem saída e resolvem decretar um estado de sítio na cidade, a fim de que a população “desgovernada” tome consciência do erro que é sabotar a democracia que “tanto se lutou para obter”. O que acontece? Nada.
O que a obra tem de mais violento é a capacidade de mostrar como todas as formas de poder, sejam elas no nível individual, do estado e até dos veículos de informação, formam uma rede de relações em que tudo funciona coordenadamente, como uma máquina moderna que reproduz os primeiros objetos, mas que, qualquer pequena avaria, deixa de funcionar e estabelece outro movimento. Enquanto os jornais afirmam que sem polícia vai haver mortes, tragédias, suicídios, desespero, o governo espera, torce e manipula para que tal aconteça com o intuito de se mostrar útil. O que fica evidente é: a democracia, como vivemos, é um regime em que uns precisam necessariamente de outros e que, quando não necessitam, o regime cai.
Ora, mas isso parece ser o contrário do que rege o conceito democrático, em que cada um deve participar com sua parcela de obrigação – direitos e deveres – para consigo e com os demais. Destaco, como exemplo, o trecho em que os ministérios obrigam que a coleta de lixo seja interrompida por uma “greve”, mas no mesmo instante as donas-de-casa se põem a limpar as ruas e, posteriormente, os próprios funcionários da limpeza ajudam, só que agora como civis.

Até que, em meio a tudo isso, se ouve um disparo: uma bomba no metrô, mortes, velórios e enterros e… Nada. Como tal pode acontecer? – perguntam-se presidente, primeiro-ministro, ministro do interior, entre outros. Nada, nenhum discurso é feito, a população enterra seus mortos e vive. Cito:
“Os nossos mortos, tão comum, de tão rotineiro consumo nas arengas patrióticas, teria sido aqui tomada à letra, isto é, sendo estes mortos, todos eles, pertença nossa, a nenhum deveremos considerar exclusivamente nosso. (…) Aqui, cada um com o seu desgosto e todos com a mesma pena”.
É essa a conclusão, claro que dialética, a que chega Saramago: se nada é de um, tudo é de todos, embora o sentimento seja ao mesmo tempo individual e coletivo. Essa é a forma que ele encontra para desmontar um regime caduco, que insiste em se reproduzir parasitariamente pelos sistemas da nossa sociedade.
Enquanto isso, do outro lado, o que faz o governo? Procura um vilão, um culpado, um subversivo, uma horda de violentos necessitados. E o que encontra? Novamente, nada. Apenas uma mulher que nunca havia cegado, seu marido oftalmologista, um cão que lambe suas lágrimas e um comissário que ao invés da cegueira branca é tomado, como que de súbito, por uma lucidez branca como a paz.


http://literatortura.com/2013/06/as-formas-de-poder-dentro-de-ensaio-sobre-a-lucidez-jose-saramago/

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