As
formas de poder dentro de ensaio sobre a lucidez – Jose Saramago
Do blog Literatortura – 22/06/2013
Nota do editor Gustavo Magnani:
Este texto estava guardado para
ser postado mais tarde, porém, devido aos acontecimentos recentes no Brasil,
decidimos adiantá-lo. Não existe nenhum paralelo direto com os casos aqui
feitos, porém, essas ligações podem ser feitas (ou não) mentalmente. Por obviedade,
o texto não tem o objetivo de discutir a causa brasileira, mas de falar do
livro. E assim, a discussão fica, repito, para o leitor. Achamos apenas
interessante publicá-lo por hora. Obrigado.
Se a lucidez tivesse uma cor,
qual seria? Para o escritor português José Saramago, vencedor do Prêmio Nobel
de Literatura em 1998, a lucidez é branca. No entanto, ela não é branca como as
nuvens de um dia cinzento, ou como o rosto de um garotinho pálido e faminto,
nem como uma moça maquiada em excesso, pronta para uma festa. A brancura ou
brancosidade da lucidez também não é como aquela outra que se encontra em
Ensaio Sobre a Cegueira, uma espécie de transparência leitosa que toma as
vistas de todos de uma capital, gerando medo, desespero e caos social. A brancura
da lucidez de Saramago é sábia, sagrada, essencial e, me parece, impossível
para esse mundo de trevas em que vivemos.
Ensaio Sobre a Lucidez, publicado
pela primeira vez em 2004, é sobre a capital de um país que, no dia das
eleições, grande parte da população resolve não sair para votar, por conta de
uma chuva. Quando o desespero já se fazia latente pela cúpula do governo, as
pessoas saem todas para as sedes eleitorais, mas o resultado surpreende: a
grande maioria dos votos é em branco. Sem a validação do resultado, outra
eleição é marcada para a semana seguinte. De novo, outra surpresa: 83% da
população vota em branco. E agora? O que fazer? Como o resultado é democrático,
mas impede a manutenção de um modelo de democracia, o governo e os membros dos
partidos se veem sem saída e resolvem decretar um estado de sítio na cidade,
a fim de que a população “desgovernada” tome consciência do erro que é sabotar a
democracia que “tanto se lutou para obter”. O que acontece? Nada.
O que a obra tem de mais violento
é a capacidade de mostrar como todas as formas de poder, sejam elas no nível
individual, do estado e até dos veículos de informação, formam uma rede de
relações em que tudo funciona coordenadamente, como uma máquina moderna que
reproduz os primeiros objetos, mas que, qualquer pequena avaria, deixa de
funcionar e estabelece outro movimento. Enquanto os jornais afirmam que sem
polícia vai haver mortes, tragédias, suicídios, desespero, o governo espera,
torce e manipula para que tal aconteça com o intuito de se mostrar útil. O que
fica evidente é: a democracia, como vivemos, é um regime em que uns precisam
necessariamente de outros e que, quando não necessitam, o regime cai.
Ora, mas isso parece ser o
contrário do que rege o conceito democrático, em que cada um deve participar
com sua parcela de obrigação – direitos e deveres – para consigo e com os
demais. Destaco, como exemplo, o trecho em que os ministérios obrigam que a
coleta de lixo seja interrompida por uma “greve”, mas no mesmo instante as
donas-de-casa se põem a limpar as ruas e, posteriormente, os próprios
funcionários da limpeza ajudam, só que agora como civis.
Até que, em meio a tudo isso, se
ouve um disparo: uma bomba no metrô, mortes, velórios e enterros e… Nada. Como
tal pode acontecer? – perguntam-se presidente, primeiro-ministro, ministro do
interior, entre outros. Nada, nenhum discurso é feito, a população enterra seus
mortos e vive. Cito:
“Os nossos mortos, tão comum, de
tão rotineiro consumo nas arengas patrióticas, teria sido aqui tomada à letra,
isto é, sendo estes mortos, todos eles, pertença nossa, a nenhum deveremos
considerar exclusivamente nosso. (…) Aqui, cada um com o seu desgosto e todos
com a mesma pena”.
É essa a conclusão, claro que
dialética, a que chega Saramago: se nada é de um, tudo é de todos, embora o
sentimento seja ao mesmo tempo individual e coletivo. Essa é a forma que ele
encontra para desmontar um regime caduco, que insiste em se reproduzir
parasitariamente pelos sistemas da nossa sociedade.
Enquanto isso, do outro lado, o
que faz o governo? Procura um vilão, um culpado, um subversivo, uma horda de
violentos necessitados. E o que encontra? Novamente, nada. Apenas uma mulher
que nunca havia cegado, seu marido oftalmologista, um cão que lambe suas
lágrimas e um comissário que ao invés da cegueira branca é tomado, como que de
súbito, por uma lucidez branca como a paz.
http://literatortura.com/2013/06/as-formas-de-poder-dentro-de-ensaio-sobre-a-lucidez-jose-saramago/
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