Da Carta Capital – 04/07/2013
Em 'Holocausto do Brasil',
jornalista reconta horror de centro manicominal em Barbacena, onde morreram 60
mil
Um campo de concentração a céu
aberto. Um genocídio de 60 mil pessoas. No maior hospício do país, 7 em cada 10
pacientes não tinham problemas mentais.
As descrições de um mundo
pavoroso seriam perfeitas para a ficção, não fosse um detalhe: elas fazem parte
da história do Brasil. Em Barbacena (MG), a chamada Colônia, maior centro
psiquiátrico do Brasil inaugurada e 1903, foi palco de atrocidades dignas de um
campo de concentração nazista onde internos morriam de frio, de fome ou por
doenças.
As violações, cometidas
sistematicamente com o aval do Estado, são narrada no livro Holocausto
Brasileiro, livro reportagem da jornalista Daniela Arbex. Lançada neste mês, a
obra baseada na exímia pesquisa da repórter especial do Tribuna de Minas mostra
que a maioria dos pacientes do hospício era internada à força. Cerca de 70% não
tinham diagnóstico de doença mental, entre eles epiléticos, alcoólatras,
homossexuais, prostitutas ou mesmo pessoas que questionavam o status quo e
passavam a ser considerados um incômodo para a sociedade – caso de uma jovem
que contestou por que recebia de seu pai menos que seus irmãos e morreu na
Colônia 30 anos depois.
A Colônia abrigava ainda meninas
grávidas e violentadas por seus patrões, esposas confinadas para que o marido
pudesse morar com a amante, filhas de fazendeiros que perderam a virgindade
antes do casamento, pessoas tímidas e 33 crianças que tiveram parte de suas
vidas roubadas durante o período em que ficaram internadas.
“A culpa é coletiva. As
atrocidades não eram questionadas naquela época porque no início do século 20
existia um movimento eugenista de limpeza social muito aceito em todo o
Brasil”, afirma a autora em entrevista a CartaCapital. “Ele, na verdade, existe
até hoje. A sociedade ainda aceita que existam vidas valendo menos. Chacinas,
que vão desde o Carandiru até a da Chatuba, no Rio, mostram que temos novos
nomes para velhas formas de extermínio. Os assassinatos em massa continuam
acontecendo e a gente continua fingindo que não vê.”
O livro traz um impactante relato
do cotidiano vivido pelos pacientes: muitos comiam ratos, bebiam água do esgoto
ou urina, dormiam sobre o capim, eram espancados ou violados. Nas noites
geladas da cidade na região da Serra da Mantiqueira, eram deixados ao relento
nus. Quando grávidas, as pacientes conseguiam se proteger passando fezes sobre
a barriga para não serem tocadas. Mas, logo depois do parto, os bebês eram
tirados de seus braços e doados. Ao menos 30 crianças foram levadas de suas
mães sem autorização.
Com ajuda dos registros feitos no
início dos anos 1960 pelo fotógrafo Luiz Alfredo, da revista O Cruzeiro,
Daniela relembra um capítulo sem perdão da história, marcado pelas mortes
também por eletrochoques, que de tantos e tão fortes chegavam a sobrecarregar a
derrubar a rede do município mineiro.
Mas o que justificaria as tantas mortes, que chegavam a 16 por dia no período de maior lotação do centro psiquiátrico? Os corpos, convém lembrar, davam lucro. Entre 1969 e 1980, 1.853 corpos de pacientes foram vendidos para 17 faculdades de medicina do País. “A partir de 1960, a disponibilidade de cadáveres acabou alimentando uma macabra indústria de venda de corpos”, lembra a autora à página 76. "Os corpos dos transformados em indigentes foram negociados por cerca de 50 cruzeiros cada um. O valor atualizado, corrigido pelo Índice Geral de Preços (IGP-DI) da Fundação Getúlio Vargas, é equivalente a 200 reais por peça. (...) Em uma década, a venda de cadáveres atingiu quase 600 mil reais, fora o valor faturado com o comércio de ossos e órgãos."
Mas o que justificaria as tantas mortes, que chegavam a 16 por dia no período de maior lotação do centro psiquiátrico? Os corpos, convém lembrar, davam lucro. Entre 1969 e 1980, 1.853 corpos de pacientes foram vendidos para 17 faculdades de medicina do País. “A partir de 1960, a disponibilidade de cadáveres acabou alimentando uma macabra indústria de venda de corpos”, lembra a autora à página 76. "Os corpos dos transformados em indigentes foram negociados por cerca de 50 cruzeiros cada um. O valor atualizado, corrigido pelo Índice Geral de Preços (IGP-DI) da Fundação Getúlio Vargas, é equivalente a 200 reais por peça. (...) Em uma década, a venda de cadáveres atingiu quase 600 mil reais, fora o valor faturado com o comércio de ossos e órgãos."
Confira os principais trechos da
entrevista com a autora:
CartaCapital - Como se deu seu
contato com a Colônia de Barbacena?
Daniela Arbex - Trabalho em
matérias que têm denúncia e defesa dos direitos humanos, área pela qual sempre
me interessei. Em 2009, entrevistei o psiquiatra e então vereador José Laerte,
que hoje é secretário de Saúde de Juiz de Fora. Ele me mostrou um livro com
imagens do local publicado em 2008 pelo governo do estado. Eu nunca tinha
ouvido falar sobre o lugar, mas aquilo me chocou muito. As imagens remetiam a
um campo de concentração. Resolvi ir atrás dessa história e mostrar quem eram
seus sobreviventes.
Quando comecei a investigar o
assunto, meu filho, Diego, tinha quatro meses. Passei dois anos levantando o
que podia e, em 2011, quando as imagens do Luiz Alfredo completaram 50 anos,
comecei a buscar quem ainda era vivo. A Colônia, hoje Centro Hospitalar de
Barbacena, fica a 95 km daqui (de Belo Horizonte). No final da apuração, passei
dois meses indo todos os dias para lá, onde eu chegava às 7 horas. Às 13 horas
eu entrava no jornal e trabalhava até tarde. No finzinho mesmo, eu escrevia de
meia-noite até 5 horas. Uma loucura!
CC - Qual a história do
manicômio?
DA - O hospital foi criado em
1903 pelo governo do estado para atender os alienados, doentes mentais.
Documentos de 1914 mostram superlotação, e os diretores reclamavam da falta de
condições para receber os pacientes, que chegavam em vagões de trem lotados.
Então, desde o início não conseguiu cumprir a função de atender e ressocializar
os pacientes. Sete em cada dez não sofriam de doença mental. Podemos dizer que
os pacientes eram, então, quem incomodasse aqueles com mais poder. Tudo que
fugia às normas sociais se encaixava na Colônia, fossem alcoolistas, negros,
pobres ou militantes políticos. Aquilo se tornou mesmo um local de segregação.
De 1903 até 1980 passaram 10
diretores por lá, alguns médicos, outros apenas administradores. Não posso
dizer que todos se omitiram, mas apesar de terem comunicado o governo de Minas
sobre as condições locais, as coisas não mudaram.
Quem ficou trabalhando lá,
aceitou tudo aquilo. Mas houve pessoas que não queriam se desumanizar, que hoje
poderiam estar aposentadas pelo estado, mas abriram mão da estabilidade porque
não concordavam com os abusos. E, embora ninguém tenha apertado o gatilho,
todos que trabalharam lá ou mesmo os políticos informados sobre as condições
carregavam as mortes nas costas. Então, a culpa é coletiva.
CC - Pagava-se pela internação?
DA - Existia um setor das
pensionistas. Quem podia pagar era a minoria, que ficava em condições um pouco
melhores. Quem não podia pagar, como a maioria, era uma multidão de indigentes,
revoltados sociais.
CC - Quem autorizava as
internações? Médicos ou delegados?
DA - Não havia médico para autorizar. Muitas das
internações eram feitas por canetas de delegados. A menina que perdia a
virgindade antes do casamento, o pai mandava para lá. Até porque os médicos,
ate a década de 50, eram raridades no local. Os funcionários eram contratados
como guardas e aquilo era o suficiente. Se uma cozinheira podia ser
transformada em enfermeira, por que contratar outros com maior qualificação?
Não havia cuidado médico, e a Colônia era um depósito de gente.
CC - Na sua opinião, a que se
deve o fato de as violações não terem sido questionadas ou combatidas. Era algo
natural chegar a haver 16 mortos por dia no local?
DA - Não era questionado porque
naquela época, no inicio século 20, existia uma teoria eugenista de limpeza
social super aceita no Brasil todo. Aliás, ela existe até hoje. Ainda aceitamos
que algumas vidas valem menos. E, por não serem consideradas gente, tirar
aquelas pessoas da vida social não impactava, era amplamente aceito para se
limpar a sociedade da escória. Essas pessoas eram a escória social. Ética não
existia, por isso esses abusos se sustentaram por tanto tempo. E as pessoas que
permaneciam lá foram se desumanizando.
CC - O cenário descrito por você
lembra o dos presídios de hoje. Você concorda com a comparação?
DA - A sociedade ainda aceita que
existam vidas que valem menos. Então, se um bandido morre, é um a menos ou
merece pena de morte. É exatamente a mesma coisa. Todas essas chacinas, desde o
Carandiru à Chatuba, no Rio, são novos nomes para velhas formas de extermínio.
Os assassinatos em massa continuam acontecendo, e a gente continua fingindo que
não vê.
Vemos o que aconteceu na Colônia
e viramos a página, como fez a sociedade ao ler sobre o assunto na edição da
revista O Cruzeiro de 1961. Essa cultura eugenista permanece até hoje. E o
discurso da sociedade de hoje é de muito ódio e vingança.
CC - Quais as maiores atrocidades
que os internos sofreram, na sua opinião?
DA - Tudo o que se passou por lá
foi indigno. As pessoas entravam e tinham a humanidade confiscada. Imagina não
sofrer nenhuma doença mental e ser colocado colocado em um lugar daquele,
passar fome, frio, tomar eletrochoque, ficar sempre sem roupa e dormir no capim
para economizar espaço nos pavilhões? Quer coisa mais indigna do que isso?
Aquilo era muito desumano e cruel, um verdadeiro campo de concentração: as pessoas
eram mandadas para lá para morrer, chegavam em vagões de cargas como os judeus
da Segunda Guerra. Uma barbárie que remete ao Holocausto. Não perdemos milhares
de judeus, mas perdemos 60 mil brasileiros.
CC - Como vivem hoje os 200
sobreviventes do lugar?
DA - É um grau muito alto de
sequela. Há pessoas que ficaram ali por 50 anos e saíram para uma sociedade que
mal conheciam depois de tanto tempo confinadas. Como um paciente que, depois de
ter saído, perguntou a que horas as luzes da cidade se apagavam. Imagina uma
pessoa descobrir já adulto o que é um interruptor de luz.
CC - De que as pessoas morriam?
DA - Morriam de fome, pneumonia,
diarreia. Na época, inclusive, falava-se que diarreia era doença de doido.
Alguns morriam de frio também. Muitos dormiam empilhados para se aquecer à
noite. De manhã, alguns acordavam mortos por asfixia ou por frio.
CC - Há, ainda hoje, algum
manicômio tão cruel quanto o Colônia?
DA - A psiquiatria brasileira evoluiu. A reforma
psiquiátrica brasileira deu um salto na humanização do atendimento. Sem dúvida,
é um ganho, mas os desafios ainda são muito grandes. Com os debates de hoje,
como o da internação compulsória, no entanto, a gente corre o risco de
retroceder. Aceitar essa institucionalização contrária à vontade do paciente
não seria a reedição dos abusos sobre forma de política pública? A sociedade
precisa refletir sobre esses modelos de atendimento que existem até a hoje e como
podermos tomar um caminho inverso ao da Colônia. Que, em vez de segregação, a
gente ofereça integração, acolhimento real.
Hoje, o que foi o hospital onde
foi o Colônia tem cerca de 700 pessoas. É uma instituição que se humanizou, mas
é inchada e com resquícios do passado. E minicolônias existem até hoje. Em
janeiro de 2013 tivemos em Juiz de Fora o hospital psiquiátrico São Domingos,
fechado por más condições: as pessoas foram encontradas nuas, com alimentação
de baixíssimas qualidade, colchonetes rasgados, condições muito parecidas às
descritas no livro.
As situações de violações de
dignidade ainda se repetem, seja nos hospitais públicos, nos presídios ou nos
centros para jovens transgressores.
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