Da Cult – Agosto/2013
Não seria possível não ouvir
Marilena Chaui a respeito das manifestações de 2013. Pensadora de importância
inestimável na história da cultura brasileira, Marilena chamou a atenção nos
últimos anos por ter rompido com a mídia. Depois do tratamento imprudente que a
maior parte do jornalismo brasileiro deu a questões políticas graves, Marilena
decidiu “não falar mais”. Seu silêncio tornou-se insuportável para os grandes
veículos de comunicação. Frequentemente cronistas dizem: “o que Marilena Chaui pensaria
sobre isso?”. É óbvia a ironia da pergunta, usada para dar a entender que o
silêncio de Marilena se deve ao fato de ela não ter o que dizer diante dos
erros do PT e do governo federal, tão defendidos por ela nos últimos 10 anos.
À CULT, porém, Marilena nunca
fechou suas portas. Muito pelo contrário. E no último domingo de junho, em
plena fase das manifestações por todo o Brasil, ela nos acolheu em sua casa, no
fim da tarde, para uma conversa franca na qual ela não apenas comenta o sentido
das manifestações, como também fala com sinceridade de suas críticas ao PT e ao
governo do PT. Não o faz, todavia, com amargura ou ressentimento, mas com a
força e a coragem de uma mulher lúcida e clara, engajada numa luta que não se
perde nem em posições ligeiras nem em novidades fáceis. Com a generosidade que
a caracteriza, ela sabe triar o que é bom e o que deve ser questionado, mas
sendo sempre movida pelo bem, pela responsabilidade intelectual e pela lucidez
de quem tem experiência. Como dizia Maurice Merleau-Ponty, o intelectual é
aquele que “levanta e fala”. Mas, muitas vezes, o levantar e o falar têm sido
acompanhados de inconsequências que vão desde a incapacidade de análise até o
autoritarismo da arrogância em nome da racionalidade (ou em nome de nada…). Definitivamente,
esse não é o caso de Marilena Chaui.
CULT
– Qual foi sua primeira reação ao ver tanta gente nas ruas durante as
manifestações de 2013?
Marilena
Chaui – Um
susto! Acompanhei as tentativas de manifestação do Passe Livre na USP e vi que
o movimento não conseguia mais do que três gatos pingados para escutar. Nem
digo participar da manifestação, mas escutar. Imaginei que iriam para a rua com
cinquenta, cem pessoas. Então, levei um susto, pois não tinha entendido a
relação entre o que eles estavam fazendo, ou seja, a fórmula clássica da
mobilização, e o uso das redes sociais. Se eu soubesse que eles iriam usar as
redes sociais, não teria me assustado, pois associaria com outros eventos que
já vi no mundo.
E
como se deu sua compreensão das manifestações?
No primeiro dia, pelo menos em
São Paulo, as palavras de ordem eram referentes ao transporte. Depois da
primeira manifestação, participei do Conselho da Cidade convocado pelo prefeito
Fernando Haddad. Os representantes do Passe Livre foram e falaram. Eles eram
cinco e cada um falou 15 minutos. Depois os conselheiros falaram. Todos os
conselheiros pediram a revogação do aumento das tarifas. O secretário Municipal
de Transportes, Jilmar Tatto, mostrou as planilhas e depois falou o prefeito.
Eu imediatamente pensei: se o prefeito revogar, os meninos vão à rua comemorar;
se ele não revogar, vai haver uma passeata não só como a primeira, mas
sobretudo com incorporação das palavras de ordem das outras cidades. E não deu
outra. Algumas pessoas ficaram perplexas; eu não. Diziam: “Como pode haver
manifestação? A inflação está sob controle; o desemprego diminuiu; os programas
sociais funcionam; há estabilidade econômica e política!”. Ou seja, os temas
que sempre caracterizaram as manifestações no Brasil estavam ausentes. Eu não
fiquei perplexa no que se refere a São Paulo, porque tenho dito há um bom tempo
que a cidade está se tornando um inferno urbano. Está impossível viver nela,
seja pelo trânsito, pela indecência do transporte coletivo, seja pela explosão
demográfica com os condomínios e shopping centers. Achei compreensível, e, num
primeiro momento, pensei que as manifestações iriam girar em torno dos temas
urbanos. Mas quando se viraram contra a política, contra a mediação
institucional, aí, sim, fiquei com medo, porque já vi esse filme em 1964 e em
1969. A gente sabe o que aconteceu nos anos 1920, na Itália, e nos anos 1930,
na Alemanha, sobre a recusa da política.
Mas
se falou muito que Haddad foi ambíguo. Ele disse que não revogava o aumento das
tarifas, mas depois revogou…
Não, ele não foi ambíguo. Ele
disse o seguinte: “Se eu revogar, significa que tenho de aumentar o subsídio.
Para aumentar o subsídio, vou ter de cortar recursos dos programas sociais.
Então, tenho de ver isso com meu secretariado; tenho de analisar onde eu vou
mexer para subsidiar e para fazer o corte”. Na verdade, ele pediu um tempo para
as pessoas. Não disse que não iria revogar. E foi nessa hora que alguns
conselheiros (como os do movimento Afroeducação) e os membros do Passe Livre
disseram que não queriam saber de planilha, que queriam a revogação imediata.
Então, não houve ambiguidade. Faltou intuição política, pois Haddad poderia ter
dito: “Vou revogar, mas convido imediatamente o Movimento Passe Livre para uma
reunião comigo e com o secretariado para fazermos um estudo de onde eu vou
tirar o subsídio”. Com isso, ele incorporaria o movimento à discussão de outros
problemas da cidade e teria sido mais politizador. Haddad deu uma resposta
técnica em um momento que pedia uma resposta política.
Algumas
pessoas dizem que as manifestações tiveram uma deriva à direita. Um dado
curioso é que há políticos da oposição, seja de “esquerda”, como os do PSTU e
do PSOL, seja de “centro-direita”, como os do PSDB, que têm se servido das
manifestações para alimentar um discurso anti-PT e anti-Dilma… Você vê uma
deriva à direita ou uma deriva anti-governo?
Não vejo nem uma coisa nem outra
neste momento. Não posso dizer que amanhã não vá ser isso. O que vejo neste
momento é que, como o PSOL e o PSTU não têm representatividade social, pois são
minúsculos, o crescimento da manifestação de rua fez com que eles julgassem que
poderiam se apropriar dela. Não houve liderança da esquerda, mas uma tentativa,
desses partidos, de se apropriar de um movimento de massa que seriam incapazes
de realizar. A mesma coisa ocorre com a direita, que não tem força de
mobilização, operando sempre por lobby e por meio da repressão (basta ver como
opera o lobby dos ruralistas contra o MST e os índios). A chamada oposição de
centro-direita está caindo pelas tabelas (basta lembrar o que aconteceu com o
movimento do PSDB, o “Cansei”), e por isso, depois de investir contra os
movimentos de rua por meio da repressão policial, tenta se apropriar deles
porque julga que podem desestabilizar o governo Dilma. Afinal, a primeira
atitude do Geraldo Alckmin foi chamar a polícia. Na USP, quando há
manifestações, a primeira atitude do reitor é chamar a polícia. Não há nenhum
vínculo real entre os partidos chamados de oposição, particularmente o PSDB, e os
movimentos de massa. Então, o que temos é: o movimento correndo pelo meio e
duas tentativas extremas de apropriação.
Isso
favorece a apropriação pela direita?
Essa é a minha preocupação. Há
elementos que favorecem a apropriação e a manipulação pela direita: o primeiro
é o fato de os manifestantes confundirem o que significa ter uma direção e o
que significa ter uma liderança. Como eles se organizam em termos de autogestão
e horizontalidade, sem dirigentes e dirigidos, eles identificam ter um rumo com
ter um líder. Não percebem que não é a mesma coisa. As manifestações, por
enquanto, estão sem rumo; têm palavras de ordem as mais variadas, mas não um
rumo, o que as torna frágeis e apropriáveis pela mídia e pela direita. O
segundo elemento é o que eu chamo de pensamento mágico: os manifestantes usaram
as redes sociais, ou seja, um instrumento do qual são apenas usuários e de que
não têm conhecimento técnico aprofundado nem qualquer controle econômico. As
redes estão inseridas numa gigantesca estrutura técnico-científica, econômica e
com vigilância e controle geopolíticos (o caso que acaba de ser revelado da
espionagem norte-americana sobre todo o planeta não pode ser minimizado), de
maneira que, sob a aparência de ser uma alternativa libertária, ela também insere
os usuários no mundo do controle e da vigilância. Penso que o caso do Egito é
um alerta, embora, evidentemente, é um caso que não se compara ao nosso, pois
lá a luta está mergulhada nos problemas postos pelas ditaduras e pelo
fundamentalismo religioso, e, aqui, se dão numa democracia como luta por
direitos. Mas o estopim lá (como em Nova York, na Wall Street) foi o uso das
redes sociais. Há ainda um outro aspecto das redes que me pareceu muito claro
nas manifestações brasileiras, ou seja, como o usuário não conhece bem o modo
de funcionamento das redes, e como para ele basta apertar um botão para que
coisas aconteçam, passa-se a ter com a realidade uma relação do mesmo tipo: eu
quero, então acontece. Como num ato mágico.
Sem
nenhuma mediação…
Sem mediação. Essa relação mágica
com a realidade está diretamente relacionada com um elemento poderosíssimo da
sociedade de consumo e muito usado pelos meios de comunicação: a satisfação
imediata do desejo. É uma das raízes da violência, porque anula a mediação, quando,
na verdade, o desejo precisa de mediação. No âmbito das manifestações, isso se
expressa pela recusa da mediação política. Por que falo em pensamento mágico?
Porque o fato de que houve uma longa e difícil negociação em torno da tarifa
passa despercebido; é como se o resultado tivesse sido imediato, um passe de
mágica. Ora, quando se tira a mediação institucional, o que se pede é a
ditadura. Por exemplo, quando vi um rapaz enrolado na bandeira brasileira dizer
“meu partido é meu país”, falei comigo mesma: “É algum neonazista que comanda
esse menino, pois esse foi o discurso nazista para a supressão dos partidos
políticos!”, o que é muito assustador e ainda mais assustador quando uma parte
dos manifestantes espancou e ensanguentou manifestantes de esquerda. Eu sempre
digo: a crítica aos partidos brasileiros é justificada, a crítica aos governos
é justificada, o que não é justificado é não perceber qual a origem desse
sistema partidário, qual é a origem desse sistema eleitoral e como é que se
luta contra ele. Não se luta suprimindo os partidos, mas produzindo uma nova
institucionalidade. E não há essa percepção por grande parte dos manifestantes.
Finalmente, outro elemento a ser pensado é o fato de que – ao menos em São
Paulo e no Rio – as manifestações de periferia são qualitativamente diferentes
das manifestações do centro das cidades. Na periferia, não são manifestações de
juventude; ao contrário, há adultos, idosos, crianças e jovens, e as demandas
são muito claras. As manifestações do centro das cidades, pelo menos em São
Paulo e no Rio de Janeiro, são predominantemente de classe média, e é essa
presença que é preocupante, porque sabemos que, depois do Comício dos Cem Mil,
em 1964, no Rio de Janeiro, a resposta foi a Marcha da Família com Deus pela
Liberdade, apoiada por Ademar de Barros (governador de São Paulo) e os
governadores do Rio de Janeiro, Minas Gerais e da Bahia. Depois houve em outros
estados. Foi uma grande marcha de classe média para derrubar o governo Goulart,
o que aconteceu no dia 1º de abril daquele ano. E depois foi a classe média que
deu o sustentáculo ideológico e apoio social à ditadura civil-militar. Quando
vi, nessas duas cidades, as esquerdas tendo de disputar a rua com a direita,
não pude deixar de ter essas lembranças. Isso é muito preocupante.
Do
que falamos quando falamos de classe média?
Há um ano participei de duas
reuniões do Conselho de Desenvolvimento Social, criado pela presidente Dilma
para pensar o que eles chamam de “nova classe média”. Nas duas ocasiões, minhas
intervenções foram no sentido de dizer: não há uma nova classe média, e sim a
velha classe média, que cresceu, prosperou, e está aí. O que surgiu no Brasil
com os programas sociais que tiraram 40 milhões de pessoas da linha de miséria
(garantindo-lhes três refeições diárias, moradia e ensino fundamental) é uma
nova classe trabalhadora. Não faz sentido usar os instrumentos dos institutos
de pesquisa e da sociologia, falando de classe A, B, C, D, E, definidas por
renda e escolaridade. É preciso pensar as classes sociais conforme sua relação
com a forma da propriedade e do sistema de produção, isto é, os proprietários
privados dos meios sociais de produção e os não-proprietários, isto é, a força
produtiva, os trabalhadores. Situada fora do poder econômico (do capital) e da
organização social (dos trabalhadores) está a classe média, que sonha com
aquele poder e tem como pesadelo “cair” na classe trabalhadora. Esse critério
nos permite compreender que o que surgiu no Brasil com os programas sociais foi
uma nova classe trabalhadora, mas que surge no momento em que vigora o
capitalismo neoliberal. Então, ela é precarizada, fragmentada, não possui
formas de organização e de referência que lhe permitam ter clara identidade,
nem formas de expressão no espaço público. Por isso é atraída pelas ideologias
de classe média, como a “teologia da prosperidade” (do pentecostalismo) e a do
“empreendedorismo” (dos chamados micro-empresários). Mas eu não fui ouvida em
Brasília. Depois houve uma reunião final de apresentação de resultados e a
equipe técnica continuou com as classes A, B, C, D, E. Disse pra mim mesma:
“Sou voto vencido. Vou para casa”. Mas pensei: “Preciso deixar isso
registrado”. Então, quando a FLACSO (Faculdade Latino-Americana de Ciências
Sociais) e o Emir Sader organizaram o livro sobre os dez anos Lula/Dilma,
decidi que meu artigo seria sobre a nova classe trabalhadora e a necessidade de
uma reforma tributária, de uma reforma política e de uma reorganização dos
movimentos sociais. Eu sei que o meu artigo destoa dos outros, que se referem
às conquistas reais e importantes desses dez anos, mas eu achei que tinha um
dever político. Voltando precisamente às manifestações: se se opera com a noção
de uma nova classe média, quais serão os programas que deverão ser implantados
para atender a essa classe? Serão programas de estímulo às montadoras, às
empreiteiras imobiliárias, às importadoras, aprofundando ao mesmo tempo o
consumo, a competição e o isolamento. E faz-se explodir o inferno urbano.
Quando falo no inferno urbano, viso essa concepção de que os programas
governamentais devem estar a serviço dessa classe média.
Isso
explica a sua afirmação de que odeia a classe média?
É.
De
fato, ter uma casa confortável, andar de avião, comer bem e poder ir ao cinema
não são sinais de classe média… É outra coisa querer absolutamente comprar um
carro 4X4… É essa classe média que você odeia? Quer dizer, um ideal de consumo
que se está construindo?
Quem ia à Europa nos anos
1950-1960 via trabalhadores dirigindo pequenos carros (na França, o famoso
“dois cavalos” da Renault; na Inglaterra, o pequenino “biriba” da Morris; na
Itália, o pequeno “cinquecento” da Fiat), saindo de férias com a família (em
geral para alguma praia), fazendo compras em lojas de departamento populares,
enviando os filhos a creches públicas e, quando maiores, à escola pública de
primeiro e segundo graus, às escolas técnicas e mesmo às universidades; também
via os trabalhadores tendo direito, juntamente com suas famílias, a hospitais
públicos e medicamentos gratuitos, e, evidentemente, possuíam casa própria. Era
a Europa da social-democracia e da economia keynesiana, quando as lutas
anteriores dos trabalhadores organizados haviam levado à eleição de governantes
de centro ou de esquerda e ao surgimento do Estado do Bem-Estar Social, no qual
uma parte considerável do fundo público era destinada, sob a forma de salário
indireto, aos direitos sociais, reivindicados e, então, conquistados pelas
lutas dos trabalhadores. E não viria à cabeça de ninguém dizer que os
trabalhadores europeus haviam passado à classe média, como se diz hoje dos
trabalhadores brasileiros, após 10 anos de políticas de transferência de renda.
Mais do que isso, a classe média conservadora (não falo da parte da classe
média que se alinha à esquerda) não tolera isso, grita e espuma contra esses
direitos dos trabalhadores. É por isso que eu falo nas “três abominações” que
definem essa classe média: trata-se de uma abominação política, porque é
fascista; uma abominação ética, porque é violenta; e de uma abominação
cognitiva, pois ela é ignorante. Eu acho que muito do que as ruas mostraram no
Brasil inteiro foram essas três abominações. Não estou celebrando, diferentemente
de vários dos meus colegas, que estão dizendo que um novo Brasil começa, que
nada será como antes, que o gigante acordou… Pelo contrário, para quem viu a
disputa desigual pelo direito à rua entre os manifestantes de esquerda e de
direita, talvez valha a pena lembrar o que escreveu Espinosa: não rir, não
lamentar, não detestar nem compactuar, mas compreender.
Criticando
esse ideal de classe média, você critica o governo federal. O que você diria,
então, sobre os comentários que a tomam por alguém de postura fisiológica, cega
para os problemas do PT e fascinada pelo fetiche do PT?
Vou contar dois episódios. Quando
eu estava ainda no governo da Erundina (1989-1993), já no final da
administração, houve um congresso do PT. Eu fui no último dia, quando havia
deliberações e moções para apresentar na assembleia geral. Entrei na primeira
sala, sentei. Disseram algumas coisas. Não concordei e levantei a mão. A pessoa
que estava dirigindo os trabalhos disse: “A companheira é delegada”? Eu disse:
“Não”. “Então a companheira não pode falar”. Pensei com meus botões: “Entrei na
sala errada. Esta não é uma sala petista. Deixe-me sair”. Saí. Entrei numa
outra sala, discutia-se outra coisa. Também tive uma discordância e levantei a
mão. A pessoa que dirigia me perguntou: “A companheira é delegada?” Eu disse:
“Não, mas já participei de tanto congresso do PT em que a gente fala… Eu não
vou votar, porque eu não sou delegada, mas eu vou falar”. “Não, a companheira
não pode falar”. Esse congresso era num lugar que tinha um pátio interno
grande. Fui, então, para o meio do pátio e comecei a gritar: “Destruíram o PT!
O PT acabou! É preciso refazer o PT!”. Fui levada para fora do recinto, porque
“a companheira não estava entendendo o congresso”. Bom, eu venho do período em
que o PT era a reunião de movimentos sociais e populares, Comunidades Eclesiais
de Base, movimentos sindicais, exilados políticos, ex-guerrilheiros,
estudantes, professores, escritores, artistas… Nós formávamos o partido e
discutíamos tudo; decidíamos tudo. Quando vi o formato que tinha tomado, falei:
“virou uma máquina burocrática”. Tanto que, embora filiada e defensora do
partido, não participo de mais nada no interior dele, desde 1993, porque não
concordo com essa estrutura. Segundo episódio: quando ocorreu o Mensalão e
houve toda a crise, surgiu um grupo que propôs a refundação do PT sob a
liderança do Tarso Genro; é um grupo que se chama “Mensagem ao PT”. Eu
participo desse grupo, que é completamente autônomo. De vez em quando, temos
uma ideia e comunicamos uns aos outros. O Juarez Guimarães fez um livro chamado
Leituras da crise. Lá se encontra minha análise crítica do que aconteceu com o
PT: máquina burocrática, máquina eleitoral, sem participação das bases,
afastado dos movimentos que deram origem a ele e que o fizeram crescer;
portanto, um partido que precisa ser refundado. Dizer que eu estou cegada pelo
PT, dizer que eu não faço críticas ao PT é coisa de gente que não lê a
literatura política. Basta ler a revista Teoria & Debate, o livro do Juarez
Guimarães e os artigos que eu publiquei mundo afora para ver que sou
extremamente crítica. Mas o fato de eu ser crítica não significa que invalido o
partido que vi nascer e que foi a condição do estabelecimento da democracia no
Brasil, porque foi o único que introduziu a ideia de direitos sociais,
políticos e culturais, pois a democracia se define pela criação e garantia de
direitos novos. Eu não abro mão disso. O partido não me traiu (como dizem os
que o abandonaram). Ele me encoleriza, me enraivece. Eu quero fazer outro com
ele, mudá-lo de cima abaixo. Mas sou petista. Isso faz parte da minha história
política, da minha luta e do enorme respeito que tenho pelos grandes militantes
ao longo de sua história.
O
que você diz sobre as críticas ao governo do PT?
Vamos começar pela questão da
moralidade. Quando houve a crise do Mensalão, escrevi um artigo para a página 3
da Folha de São Paulo (foi meu último artigo para a Folha), em que eu dizia o
seguinte: uma visão moralista fala de ética na política. Uma visão efetivamente
ética tem que falar em ética da política. A ética na política é a transposição
de valores privados para o espaço público; a ética da política é a criação de
instituições que tenham valores democráticos e republicanos. Faz mais sentido
defender a ética da política, porque se há boa qualidade das instituições, não
vai poder haver corrupção, pois a corrupção decorre das péssimas qualidades das
nossas instituições, que não são verdadeiramente republicanas nem
verdadeiramente democráticas. Eu dizia, naquele artigo, algo que tenho dito
desde 1994: que era necessário fazer uma reforma política. Nós herdamos da
ditadura o pacote de abril de 1975 do general Golbery (do Couto e Silva). Esse
pacote, que transformou os territórios em estados, dividiu o Mato Grosso, dividiu
o Piauí, o Pará, enfim, rearrumou o país, tinha como finalidade garantir a
maioria para a ARENA e impedir a ação política do MDB. Dessa decisão vieram os
casuísmos, o sistema eleitoral e a forma completamente absurda da representação
dos estados que não leva em conta a densidade demográfica de cada estado da
federação. Um dos articulistas da Folha respondeu, dizendo que eu era
fisiológica com relação ao PT e que eu era uma comadre do governo. Nunca mais
escrevi na Folha. Então, desde 1994 e 2004 eu bato na tecla da reforma
política. Por outro lado, me chamar de fisiológica é muito engraçado, porque
nunca tive cargo no partido. Ocupei a Secretaria Municipal de Cultura de São
Paulo no governo da Erundina (aliás, eu havia recusado, explicando a ela que não
podia, não devia nem queria o cargo; mas ela foi mais persuasiva…). Quando me
perguntam: “Você tem uma ideia do que poderia ser o inferno?”, digo: “Sim. A
Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo”. Essa experiência foi para mim
uma violência metafísica. Não tenho cargo em governos. Não tenho cargos no PT.
Não represento nenhum político de coisa nenhuma. Eu sou fisiológica no quê?
Isso é o que eu chamo de abominação cognitiva, que significa ausência de
análise e uso de uma expressão qualquer que não designa realidade nenhuma. Quer
dizer, fisiológica no quê? Nas surras políticas que eu levo? Porque o que eu
apanho por ser petista e defender o PT e o governo não está no gibi! Já me
chamaram de tudo. Só não fui chamada de santa, querubim e duende. Então, é
fisiologismo que eu tenha princípios políticos e que os defenda como tais? A
minha questão com relação à moralidade é: o sistema gerado pelo general
Golbery, que organiza os sistemas partidário e eleitoral, impede que qualquer
governante eleito para o poder executivo possa governar só com o seu partido e
o obriga a fazer coalizões que destroem a estrutura partidária, os programas e
metas, levando a uma perda de identidade. O exemplo que eu costumo dar é o caso
da Luiza Erundina. Era um governo do PT e do PCdoB. Só. Não tinha coalizões nem
“base aliada”. Mas, quando ela deixou a Prefeitura, haviam ficado parados na
Câmara Municipal 325 projetos de lei, a tarifa zero não passou, e uma série de
propostas que foram votadas não foram aprovadas. Alguns políticos influentes
pagavam os vereadores. Eu não vou dizer o nome deles, mas vou contar um
episódio: quando Erundina apresentou seu primeiro projeto, o José Eduardo
Martins Cardoso (atual ministro da Justiça), que era o chefe de gabinete, foi
negociar com os vereadores. Havia um vereador, tradicional na casa, que falava
pelos outros… Ele fez a seguinte pergunta: “Mas, secretário, o senhor não
trouxe a maleta?”. O secretário disse: “Qual maleta?”. Ele falou: “A maleta
para a gente negociar. Tem um cara aí que já ofereceu para cada um de nós 10
mil dólares. A prefeita cobre?”. Evidentemente, como a prefeita não “cobria”,
tivemos 325 projetos de lei que não foram discutidos nem votados. Nós
governamos com a cara e a coragem. Ela não conseguiu nenhum empréstimo federal,
nenhum empréstimo estadual e bloquearam os pedidos de empréstimos
internacionais. Ela governou com os impostos de uma prefeitura que tinha sido
quebrada pelo Jânio Quadros. O atual sistema partidário e eleitoral faz com que
nenhum eleito para o executivo disponha de maioria no legislativo. Ora, a
maioria de projetos e programas precisa de um legislativo que os aprove. Com o
sistema atual você é forçado às coalizões. Então, precisamos fazer a reforma
política. Mas quando alguém propõe uma Constituinte Específica para isso, o que
o PSDB diz? Que é golpe! Ele não quer que mude o sistema político! Vem dizer
que a corrupção está do nosso lado quando eles não querem a mudança do sistema
político? Além do que, com esses legislativos que estão aí, quem vai fazer a
reforma política? Tem de haver uma Constituinte Específica. A arrogância
moralista não faz uma análise de por que o sistema partidário e o sistema
eleitoral são como são. Por que a classe média não saiu às ruas numa
manifestação nacional para derrubar o general Golbery e o Pacote de Abril, já
que ela quer a ética na política? Não vi
nenhum deles na rua. Não ouvi um só grito da parte deles. E agora eles gritam
contra o efeito daquilo que o Golbery fez como se fosse obra do PT. E não
querem que eu fale em abominação política e cognitiva?
Um
outro aspecto é a crítica que a esquerda também faz ao governo e ao PT. Por que
há, por exemplo, tanta crítica do PSTU, do PSOL e de outros partidos de
esquerda?
Vou fazer uma distinção entre
pensamento mágico e situação efetiva de vários partidos de esquerda. Começo
pelo pensamento mágico. Estive em um debate em que uma participante propôs o
programa mínimo para os próximos dias: tirar todos os evangélicos dos
legislativos, tirar a Dilma, estatizar os bancos, estatizar as empresas
multinacionais e aproveitar a crise mundial do capitalismo, que possivelmente é
a última. No caso dos mais velhos, porém, o pensamento mágico é
irresponsabilidade política. É importantíssimo que a sociedade faça críticas e
leve o governo em direção à esquerda. O Lula e a Erundina diziam isso: “Para
poder governar eu preciso dos grandes movimentos sociais puxando para a
esquerda”. Ora, com uma ação e um pensamento mágicos, em vez de você puxar para
a esquerda e forçar os governos a ir nessa direção, você levanta uma barreira
que faz com que ninguém queira ir na sua direção porque ela é tão absurda,
irresponsável e ingênua, que ninguém leva a sério. Passo à questão dos vários
partidos de esquerda menores (em termos de número de filiados e de representantes
eleitos). Esses partidos não possuem uma base social sólida que lhes dê uma
clara representação nacional. Por isso, existem principalmente sob a forma do
discurso intempestivo. Se você perguntar qual é a ação política efetiva que
eles realizaram ou que estão realizando, e de alcance nacional, não há nenhuma.
Se estivéssemos numa ditadura e eles não pudessem agir, eu calaria minha boca
imediatamente. Mas nós estamos numa democracia; portanto, eles podem agir. Mas
sua ação é pontual, fragmentada e tem a finalidade (justa e necessária) de
marcar presença. Por que isso? Porque é a única forma de aparecer no cenário
nacional. Se você tomar os meios de comunicação, vai ver uma coisa
interessantíssima. Quando, em termos eleitorais, se achou que Heloísa Helena
tinha alguma possibilidade de impedir a eleição da Dilma, os meios de
comunicação a promoveram de todas as maneiras, até o instante em que ela fez
bobagem, porque ela é despolitizada. Passaram então para Marina. Tentaram
usá-la. E quando perceberam que a Marina não ia dar conta, a abandonaram
também. Então, há uma espécie de exército político de esquerda que funciona
como um exército de reserva que as oposições e a mídia instrumentalizam e,
depois de usar, esvaziam.
Como
você vê o elogio dos movimentos sociais e das lideranças individuais, feito por
alguns intelectuais que defendem a superação do modelo partidário?
Eu acho que falta uma verdadeira
análise econômica, uma verdadeira análise de classe e uma verdadeira análise do
que seja a democracia. Se você não faz uma análise da forma da propriedade, com
base na qual você pode pensar a divisão social; se não pensa a sociedade como
contraditória e conflituosa; e, sobretudo, se não pensa como exercício de
poderes tácitos e implícitos, nunca vai poder operar no campo político. Porque
vai operar no campo político sob a forma da explosão espontânea disto ou
daquilo. Como é que se garante a vida de coletividades inteiras, a vida de um
país inteiro, à espera de que aqui e ali, como cogumelo, brote um líder que fale
isso, outro que fale aquilo? Mas não é só isso! Quem vai realizar o que deve
ser realizado? Eu posso sair pela rua e dizer: “É o seguinte: amanhã não quero
latifúndio no Brasil, não quero agronegócio e quero o fechamento dos bancos.
Ponto”. Aí, eu vou nas redes sociais e conclamo o país para ouvir a minha voz
nessa direção. OK. Todo mundo aprova. Mas quem executa? Esses elogios são de
uma cegueira muito grave, porque há um universo que é composto pela
propriedade, pelas classes sociais e pelas institucionalidades. Como é que se
vai operar sem isso? Você pode transformar tudo isso numa outra direção, mas
não pode dizer que você vai operar sem isso. Você não está em Atenas! Você não
está em Roma! Até Roma virou Império e Atenas teve os 30 tiranos! Eu insisto que
precisamos compreender o sistema planetário de controle e vigilância postos
pela web e pela internet, no qual o centro está em toda parte e a
circunferência em nenhuma, disseminado numa infinidade de máquinas pelo mundo,
formando, como explica Paul Mathias, uma nebulosa informacional amplamente
insondável, diversamente organizada, às vezes aberta e disponível, mas
frequentemente fechada e secreta. A internet nasce numa infraestrutura
econômica que ela mantém invisível, aparecendo como um ambiente universal de
informação e comunicação globalmente uniforme. Ora, nossa experiência reticular
está circunscrita a um número restrito de programas aplicativos que permitem as
múltiplas operações desejadas em um número limitado de gestos previstos e
uniformes em todo o planeta, sem que tenhamos a menor ideia do que são e
significam os protocolos informáticos que empregamos. Ignoramos os
procedimentos operatórios que a criaram e a conservam, as leis de sua formação
e configuração, sua arquitetura funcional. Por isso, não é possível celebrar as
redes sociais como libertárias em si e por si mesmas, dispensando as mediações
políticas.
Você
não teria muita ilusão com o sistema de consulta direta…
Sou totalmente favorável. Pode-se
e deve-se fazer isso. Uma das coisas mais impressionantes dos movimentos
sociais e populares dos anos 1970-1980 foi que eles introduziram a noção de
democracia participativa e que, portanto, era com base no que havia sido
decidido por aqueles movimentos que os representantes agiam. Estabelece-se um
tipo de instituição – o movimento social e o movimento popular –, que opera
horizontalmente e com autonomia e que garante por meio da democracia
participativa a verdade da democracia representativa. O representante é
efetivamente o seu representante. Há mil e uma maneiras de assegurar a consulta
direta. Mas não arrebentando a institucionalidade. É uma coisa pueril.
E
há uma espécie de incitação à violência por parte de alguns líderes de
movimentos sociais e intelectuais de “esquerda”.
Olha, existe a violência
revolucionária. Ela se dá no instante em que, pelo conjunto de condições
objetivas e subjetivas que se realizam pela própria ação revolucionária, se
entra num processo revolucionário. E, durante um processo revolucionário, a
forma mesma da realização é a violência. O baixo da sociedade diz “não” para o
alto e não reconhece a legitimidade do alto da sociedade. Esse é o movimento
revolucionário, com a operação da violência no interior dele, porque é um
movimento pelo qual se destroem as instituições vigentes, a forma vigente da
propriedade, do poder etc., para criar outra sociedade. E isso se faz com
violência; não é por meio da conversa e do diálogo. Mas tem de haver
organização. Primeiro, a classe revolucionária tem de estar organizada e saber
quais são as metas e quais são os alvos físicos. Você não quebra qualquer
coisa. Eu me lembro de uma frase lindíssima do Lênin em que ele dizia assim:
“Há uma coisa que a burguesia deixou e que nós não vamos destruir: o bom gosto
e as boas maneiras”. Ora, não estamos num processo revolucionário, para dizer o
mínimo! Se não se está em um processo revolucionário, se não há uma organização
da classe revolucionária, se não há a definição de lideranças, metas e alvos,
você tem a violência fascista! Porque a forma fascista é a da eliminação do
outro. A violência revolucionária não é isso. Ela leva à guerra civil, à
destruição física do outro, mas ela não está lá para fazer isso. Ela está lá
para produzir a destruição das formas existentes da propriedade e do poder e
criar uma sociedade nova. É isso que ela vai fazer. A violência fascista não é
isso. Ela é aquela que propõe a exterminação do outro porque ele é outro. Não
estamos num processo revolucionário e por isso corremos o risco da violência
fascista contra a esquerda (mesmo quando vinda de grupos que se consideram “de
esquerda”!).
De
onde vêm as referências filosóficas desses intelectuais?
Alguns citam Giorgio Agamben;
outros, Antonio Negri; outros, ainda, Foucault. Não está claro para mim, porque
tenho me ocupado com uma problemática mais ligada aos historiadores ingleses,
que procuram saber como se dá o processo de denegação da realidade. Mas tenho
um pouco de preocupação com a noção de multitudo de Antonio Negri. Ele parte de
Espinosa, afirmando que a multitudo é o sujeito político. O que Espinosa
afirma, ao propor a multitudo como sujeito político, é o princípio republicano
clássico de que todo poder vem do povo e não pode ser exercido sem ele. Mas,
como os humanos são naturalmente seres passionais, eles precisam criar
instituições que permitam a convivência sem destruição recíproca, pois, se todo
mundo pode tudo (é o que Espinosa chama de direito natural de cada um e da
multitudo), ninguém pode nada; a forma da relação será aniquilar o outro,
porque o outro é uma barreira ao meu direito e é o meu inimigo. A multitudo é
travejada por paixões (medo, esperança, amor, ódio, ambição, inveja, cólera,
generosidade, compaixão), ou seja, a multitudo não é a presença da razão no
espaço público e é exatamente por isso que a política é instituída como
introdução de uma racionalidade prudencial capaz de assegurar que o conflito
das paixões não seja eliminado (pois ele define a condição natural dos seres
humanos), mas mediado pelo direito coletivo, garantindo um poder que sustente uma
sociabilidade segura, pacífica e livre, ou seja, o que Espinosa chama de
democracia ou poder popular absoluto. A multitudo espinosana é, ao mesmo tempo,
a guardiã da democracia e o maior perigo contra democracia. Essa contradição é
o coração da política. Já a multitudo de Negri não tem conflitos, não é
travejada por paixões, não é contraditória, mas é inteiramente positiva. Tudo o
que vier dela é bom. Eu digo que as paixões não têm freios, e quando elas estão
ligadas à forma da propriedade e ao exercício do governo, você tem de realmente
segurar a explosão passional ilimitada. A ideia de uma multitudo essencialmente
libertária não foi pensada nem pelos anarquistas. E olha que anarquista adorava
o exercício da violência como ação direta!
O
plebiscito em vista da reforma política pareceria uma forma de fazer falar a
multitudo… Mas há intelectuais e políticos de esquerda e de centro-direita que
chamam de autoritária a proposta de plebiscito feita pela presidente Dilma. FHC
disse isso. O PSDB está propondo um referendo…
Claro! Não é uma gracinha? O
plebiscito é o uso perfeito da ideia de multitudo, e por isso os críticos
querem impedir que as contradições se manifestem e que ela realize o trabalho
político dos conflitos. Os críticos tomam a multitudo no sentido de turba
enfurecida e manipulável. Politicamente incompetente. É inacreditável. É claro
que querem, no máximo, um referendo… Como se nossos legislativos fossem
subitamente tomados de consciência republicana e democrática e, por si mesmos,
fizessem a reforma política. Estão querendo brincar com a gente? E mais, o
plebiscito está previsto na constituição brasileira. De onde vem que é
autoritário? Pelo contrário. É efetivamente uma consulta, uma expressão da
democracia participativa e da soberania da multitudo, que para isso precisa ser
amplamente informada a fim de poder deliberar.
A
Veja comparou a presidente Dilma com
Hugo Chávez…
Estou esperando a hora em que
tivermos manifestações de direita iguais às da Venezuela, Bolívia, Chile,
Argentina e Uruguai. O plebiscito pressupõe o direito à informação. Se a
sociedade não estiver informada, será manipulada. E sabemos do papel da mídia
para produzir a desinformação… Vai ser a próxima batalha.
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