quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Entrevista | Hugh Lacey


Valores e atividade tecnocientífica
Tecnociências e descontrole tecnológico serão alguns dos temas abordados por Hugh Lacey, um dos filósofos mais renomados nesse imbricado campo de atuação filosófica

Por Alexandre Quaresma

Se considerarmos que desenvolvimentos tecnológicos não significam necessariamente desenvolvimento humano, e que os benefícios desses desenvolvimentos se distribuem de maneira irregular na sociedade que os gera, veremos que há uma revolução disruptiva em marcha, e isso, por si só, obriga-nos, de imediato, a deslocar nosso foco de atenção do ser humano, e suas inúmeras organizações sociais, para estendermos nosso olhar crítico diante de suas criações tecnológicas. Até porque sociedades criam tecnologias, cada vez mais sofisticadas, que, por sua vez, transformam inelutavelmente as mesmas sociedades que as criam em um processo “infinito”. E, nesse rodopiar turbilhonante, vão se transformando também os seres humanos que compõem tais sociedades, o meio ambiente e a própria cultura, pois esses três níveis são diretamente influenciados segundo as técnicas e tecnologias que vão sendo criadas e utilizadas.

Quem irá clarificar a nossa compreensão acerca desses temas tão instigantes da pós-modernidade é Hugh Lacey, que se ocupa cotidiariamente em pensar a dinâmica relação entre tecnociências e sociedades, e que gentilmente concedeu essa entrevista à revista Filosofia Ciência&Vida. Hugh Lacey é professor emérito de Filosofia de Swarthmore College, Swarthmore, Pennsylvania, EUA, e pesquisador colaborador no projeto temático USP/Fapesp “Gênese e significado da tecnociência”. É autor de diversos livros de Filosofia da Ciência, entre eles Valores e atividade científica, Valores e atividade científica II e A controvérsia sobre os transgênicos.

FILOSOFIA • Diante do contexto, que envolve valores e atividade tecnocientífica – indagamos –, qual é a força principal que o move aos estudos desses fenômenos sociotécnicos e antropotécnicos de nossa civilização?
Lacey •
 Meu trabalho recente trata da interação entre as atividades científicas e os valores éticos e sociais; discute o impacto dos valores na conduta da Ciência, e como os resultados científicos afetam os valores incorporados nas instituições sociais. Estou motivado fortemente a colaborar com aqueles que estão tentando trazer a seguinte questão ao centro da agenda da pesquisa científica: Como deve ser conduzida a pesquisa científica, por quem e com quais prioridades, e utilizando quais tipos de metodologias, mas como (em colaboração com quais movimentos e instituições) deve ser o conhecimento científico utilizado, as tecnologias desenvolvidas e administradas, de modo a assegurar que a natureza seja respeitada, que seus poderes regenerativos não sejam solapados, e que sejam restaurados sempre que possível, e que os direitos e o bem-estar de todos e as condições para a participação construtiva numa sociedade democrática sejam fortalecidos em todo o mundo? Quando levanto essa questão, questiono o fato de essa transformação ser inevitável a longo prazo; e resisto à mentalidade tecnocrática predominante nas instituições científicas atuais que é responsável pelas tendências correntes de tornar a Ciência uma tecnociência, que serve a interesses ligados ao capital e ao mercado. Sem dúvida, fenômenos sociotécnicos e antropotécnicos se integram nas principais instituições sociais de nossa época, e nas trajetórias delas para o futuro, porém é importante reconhecer que os seus benefícios amplamente valorizados são acompanhados por impactos negativos no ambiente, nas vidas humanas e nos arranjos sociais. Assim, esforços devem ser feitos para entender e avaliar esses fenômenos à luz de como possam servir a interesses e projetos vinculados aos valores salientados na minha questão supracitada; e para explorar as possibilidades de projetos alternativos que possam ter benefícios comparáveis ou maiores sem impactos tão negativos.

FILOSOFIA • Num mundo cada vez mais tecnicizado, como poderemos garantir a manutenção dos valores que acreditamos serem os mais significativos e importantes de nossa humanidade?
Lacey • 
Não poderemos garantir o fortalecimento ou a manutenção dos valores da justiça social, sustentabilidade, bem-estar de todos e democracia participativa. As tendências socioeconômicas atuais, enraizadas profundamente em instituições poderosas, enfraquecem a manifestação desses valores; e a Ciência, conduzida como tecnociência, que serve aos interesses ligados ao capital e ao mercado, contribui para fortalecer essas tendências. A Ciência poderia ser conduzida de uma maneira diferente, em que visaria à geração do conhecimento e que serviria a projetos que incorporam os valores já mencionados, e assim contribuiria no sentido de introduzir condições nas quais tais valores pudessem ser fortalecidos.1 Mas a Ciência não pode ser conduzida de outra maneira sem um processo de transformação que envolveria colaboração com uma multiplicidade de agentes, movimentos e instituições. Embora tal processo não garanta que os valores da justiça social (e os outros) sejam mantidos, ainda assim contribuiria para nutrir a aspiração de que uma transformação social é possível é possível, gerando arranjos em que estes valores seriam incorporados mais adequadamente.

FILOSOFIA • O senhor concorda com essa ideia de tecnociência “descontrolada”, cujos fins quase nunca podem ser direcionados intencionalmente, para solução de problemas sociais, por exemplo, além de ainda gerarem outros problemas novos, dantes inexistentes?
Lacey •
 Inovações tecnocientíficas – mesmo quando direcionadas para resolver um problema social, por exemplo, relacionado à saúde – estão sendo desenvolvidas e implementadas com a finalidade de fortalecer os interesses do capital e do mercado. Um novo medicamento não é só um objeto com uma certa composição química que tem efeitos no corpo humano, mas é também uma mercadoria, cujo uso e disponibilidade são controlados de acordo com os direitos de propriedade intelectual. A pesquisa que fornece a evidência da eficácia do medicamento não explica nada sobre os efeitos que ele tem em virtude de ser uma mercadoria. Da mesma maneira, a pesquisa que fornece a evidência da eficácia do uso das culturas transgênicas em combinação com um pesticida particular não explica nada sobre os seus potenciais efeitos ecológicos e sociais. Nesse contexto, a implementação de inovações tecnocientíficas – mesmo quando contribuem efetiva e propositadamente para resolver um problema particular – provavelmente vai gerar problemas sociais novos e não antecipados. A pesquisa, conduzida no espírito da minha resposta à sua questão inicial, poderia antecipar alguns desses problemas, e apontar na direção de abordagens alternativas. A história, porém, é aberta, e nunca podemos esperar e antecipar a sua trajetória em detalhe e todas as possibilidades novas que podem surgir.

FILOSOFIA • Segundo a sua compreensão, qual seria a gênese e o significado da tecnociência, título do projeto temático de que o senhor participa como professor convidado no Departamento de Filosofia da USP, ou seja, como se origina a tecnociência e o que ela significa?
Lacey •
 O termo “tecnociência” se refere à dificuldade de separar Ciência e tecnologia nas tendências predominantes da pesquisa científica contemporânea.2 Vinculado a esta, a ênfase principal dentro dessas tendências não é para aumentar nosso entendimento acerca dos fenômenos com o horizonte do entendimento compreensivo do mundo. Em vez disso, trata-se da geração de inovações, que, desse modo, vão aumentando o nosso poder de fabricar, de efetuar e de intervir na natureza ao serviço de fins úteis. Na tecnociência, a tecnologia mais avançada é utilizada para produzir instrumentos, objetos experimentais e novos objetos e estruturas que tornam possível a obtenção do conhecimento de eventos e estados de coisas de domínios novos; especialmente conhecimento sobre as novas possibilidades do que podemos fabricar e efetuar, como os horizontes da inovação prática, industrial, médica, militar e do crescimento econômico, sempre em vista. A Ciência Moderna é marcada pela existência de relações mutuamente reforçadoras entre a adoção das suas metodologias prioritárias – aquelas que servem na procuração do conhecimento e entendimento amplo dos fenômenos do mundo – e a sustentação de valores vinculados ao aumento dos poderes humanos para intervir na natureza e controlá-la.3 Por causa disso, embora tradicionalmente a ênfase tenha sido principalmente sobre a obtenção do entendimento dos fenômenos do mundo, as implicações utilitárias do conhecimento científico eram sempre discutidas e buscadas – até um ponto que, desde Bacon, fazia parte da tradição a tendência de alguns cientistas conduzirem sua pesquisa para fins utilitários. Na tecnociência, torna-se efetivamente o objetivo primário da pesquisa científica para aumentar nosso poder de controlar – assim, a tecnociência representa o fortalecimento e a perpetuação de uma tendência sempre presente na tradição científica. Ao mesmo tempo, o que se considera como “fins úteis” tende a ser interpretado sob a luz dos valores do capital e do mercado. Portanto, surge a ideia de que a Ciência visa a inovações tecnocientíficas que contribuam para o crescimento econômico, e a Ciência institucionalizada se torna em grande medida tecnociência orientada comercialmente.4

FILOSOFIA • Como o senhor vê a preponderância da lógica econômico-capitalista no fomento, controle, patente e exploração dos pretensos resultados e benefícios dessas novas realidades tecnológicas, e como as comunidades mais carentes poderiam se apropriar dessas tecnologias?
Lacey •
 A tecnociência orientada comercialmente tem desenvolvido e implementado muitas inovações que beneficiam, difundem e contribuem fortemente para a transformação radical do mundo em que vivemos, na medida em que aumentam as capacidades humanas para agir e resolver problemas que até então permaneciam intratáveis. Ao mesmo tempo, contribui causalmente para a corrente crise ambiental, com seus aspectos sociais devastadores, mas não produz um conhecimento adequado capaz de tratar essa crise. Além disso, os benefícios da tecnociência não vêm sendo uniformemente distribuídos entre pobres e ricos – pior que isso, sob as condições socioeconômicas predominantes, grande contingente de empobrecidos têm sofrido deveras, material e socialmente, como consequência de tal progresso. Isso enfraquece valores democráticos essenciais – em particular, o respeito aos direitos humanos e à capacidade dos cidadãos para assumir papel participativo na conformação de práticas que atendam às suas necessidades básicas. O fortalecimento desses valores democráticos requer esforços para descobrir usos dos resultados da tecnociência orientada comercialmente para servir mais adequadamente aos interesses públicos e democráticos e democrático, mas também o redirecionamento das práticas e instituições da Ciência para tornarem-se mais responsáveis.

FILOSOFIA • O senhor acredita que esse contínuo processo de desenvolvimento tecnológico favorece ou desfavorece a inclusão social e a pluralidade das populações mundiais?
Lacey •
 Interpreto “inclusão social” à luz dos valores da justiça social e outros valores já mencionados, em que se inclui o valor do fortalecimento da agência do mundo todo, a sua capacidade para agir efetivamente informada pelos seus próprios valores autenticamente endossados, em harmonia com os seus valores culturais. Isso requer o desenvolvimento de tecnologias – “tecnologias sociais”5 – que incorporem esses valores. A continuação do desenvolvimento tecnológico dentro da trajetória do capital e do mercado não produzirá as tecnologias necessárias.

FILOSOFIA • Como as sociedades podem preservar seus valores mais essenciais e existenciais diante de técnicas biotecnológicas drásticas, como a clonagem humana e a manipulação genética, por exemplo, cujos experimentos nos assombram com sua extrema desumanidade?
Lacey •
 Comentarei apenas sobre as responsabilidades dos cientistas vinculadas a esses desenvolvimentos. Tende ser pressuposto nas instituições científicas de destaque não só que a pesquisa científica visa a inovações tecnocientíficas que contribuam para o crescimento econômico, mas também que a inovação, mais ou menos sem limites, deve ser procurada sempre em mais domínios, e que normalmente a eficácia de uma inovação é suficiente para legitimar eticamente a sua implementação social. Tais pressupostos dão força ao que você denomina “desumanidade” que acompanha essas inovações; e a ação à luz dela solapa a integridade da Ciência e o seu valor tradicional de ser parte do patrimônio compartilhado da humanidade. É responsabilidade dos cientistas desafiar esses pressupostos, e trabalhar na direção da reinstitucionalização da Ciência para que a questão, levantada antes, adquira significado amplo. A tentativa de preservar os valores da justiça social requer atividades de uma grande variedade de movimentos em busca da mudança social. A menos que os cientistas assumam as suas responsabilidades, e em colaboração com esses movimentos desafiem os pressupostos mencionados, ficará fácil para os proponentes da prioridade da inovação tecnocientífica continuarem a rechaçar toda crítica como “fora de contato com os nossos tempos”.

FILOSOFIA • Quando surgir um ser humano inteiro clonado, como um fato já dado e consumado, assim como aconteceu com a famigerada ovelha Dolly – indagamos –, o que isso significará para a humanidade do ponto de vista dos arquétipos simbólicos estruturais que nos norteavam até então de criador e criatura?
Lacey •
 Não sei se a clonagem de um ser humano completo está ao alcance das possibilidades tecnocientíficas futuras. Questiono, porém, o significado científico e humano da exploração sem limites de possibilidades desse tipo. À luz dos valores da justiça social, qual seria o valor – indago – de produzir um clone de um ser humano completo, especialmente desde que, dado o estado do mundo contemporâneo, seria provável que tais clones pudessem ser controlados de acordo com regimes de direitos da propriedade intelectual? A aspiração de produzir clones humanos me parece simplesmente refletir sobre a húbris que frequentemente acompanha a tecnociência orientada comercialmente, a ideia de que os seres humanos “inteligentes” possam fazer “melhor” do que Deus ou natureza, esquecendo o fato de que as habilidades técnicas dos inovadores tecnocientíficos não têm muito valor para explorar e administrar as consequências socais, humanas e ecológicas das implementações das suas inovações.

FILOSOFIA • Como afirma Habermas6, o clonado e manipulado geneticamente pode se sentir insatisfeito com sua condição físico-existencial determinada por outrem, e essa crise, segundo ele, não tem solução. O senhor concorda com Habermas?
Lacey •
 Isso reforça a importância do desenvolvimento de programas alternativos de pesquisa e desenvolvimento que tenham fins distintos dos de produzir inovações tecnocientíficas desses tipos.

FILOSOFIA • Seria digna, moral e humanamente aceita, segundo o seu entendimento, a produção bioindustrial de seres humanos clonados, a partir do material biológico do próprio interessado na extração de um órgão específico, ou diversos deles, por exemplo? Algo como cultivar um estoque vivo de “partes sobressalentes” (humanas?) para abastecer um hipotético “parque humano”?
Lacey •
 Quaisquer respostas parciais que consideremos não devem tratar dos assuntos éticos sobre a clonagem separadamente dos processos e resultados da produção bioindustrial. É muito provável que as respostas variarão com os casos particulares, com os métodos utilizados, e com assuntos de posse, lucro e controle sob direitos da propriedade intelectual. Nesse momento, porém, as questões são sobre possibilidades conjeturais, sobre especulações, cujos detalhes não são conhecidos. Questões éticas muito mais urgentes têm a ver com a seguinte indagação: Como podemos fortalecer a agenda da justiça social, sustentabilidade, bem- -estar de todos e democracia participativa? Querendo ou não, a produção bioindustrial de seres humanos clonados para ser digna, moral e humanamente aceita, dependeria de ela, de fato, fazer uma contribuição positiva para fortalecer esses valores que mencionei, todavia, conforme já lhe respondi, estou cético que tais técnicas poderiam fazer uma contribuição desse tipo.
A busca contínua das inovações tecnocientíficas, sempre em novos domínios, sob a influência de valores ligados à dominação da natureza, pode conduzir a consequências trágicas para a civilização

FILOSOFIA • Ainda sobre a nossa Fisiologia, o senhor concorda com a visão reducionista e mecanicista, muito em voga atualmente na academia, que enxerga o corpo humano como uma máquina, e ainda prevê a sua ontologia por meio de redutoras metáforas maquínicas?
Lacey •
 Não. Os seres humanos são agentes, seres corporais que também têm dimensões conscientes/mentais/ racionais e sociais que não podem ser reduzidas à dimensão corporal. Dessemelhante do comportamento das máquinas, o comportamento humano não pode ser explicado adequadamente em termos de estruturas mecânicas (já que é fisiológico) e as interações e os processos dos seus componentes. O florescimento humano envolve a interação de todas as dimensões dos seres humanos; depende (entre outras coisas) do cultivar da agência racional e das condições sociais para a sua boa realização. As análises reducionistas são particularmente insensíveis ao caráter social essencial dos seres humanos e carecem de recursos ontológicos para fazer sentido quanto ao valor da solidariedade.

FILOSOFIA • Edgar Morin afirma que a lógica tecnológica “expulsa o ser do ser, a vida da vida, e identifica o seu objeto com aquilo que é manipulável por natureza: o artefato. E este é o mito bárbaro que se formou no conhecimento científico e que tende a aliar-se com outras formas de barbárie”.7 O senhor concorda com essa afirmação?
Lacey •
 Acho que a tecnologia frequentemente – quando os artefatos (objetos tecnológicos) incorporam valores vinculados à dominação da natureza – é praticada e institucionalizada de uma maneira coerente com a lógica que Morin descreve. Os objetos tecnológicos sempre incorporam alguns valores éticos e sociais, e seus usos possíveis nos ambientes sociais requerem que eles mesmos incorporem alguns valores específicos, não necessariamente aqueles da dominação da natureza. A identidade de um objeto tecnológico – o tipo de objeto que ele é e os valores que incorpora – é uma função complexa da sua organização física/química/biológica, a sua gênese social e os interesses por trás da sua fabricação e/ ou utilização, as suas técnicas associadas e know- -how, os seus empregadores, e contextos (sociais, econômicos, ambientais) dos seus usos. Podemos incorporar valores vinculados às posturas frente à natureza que podem não ser entendidas em termos apenas de dominação de dominação: por exemplo, as posturas de respeito, preservar/restaurar, acomodar, sustentar, cultivar, contemplar, gozar.

FILOSOFIA • “A técnica assim reivindicada instaura, pois, um mundo à sua imagem. O acaso é excluído, pois o acaso faz parte do mundo real, natural, que a utopia mantém precisamente a distância. Mundo sem acaso, sem impureza, sem morte nem decomposição, sem poeiras nem extravagâncias, sem jogos nem prazer, e sem outra respiração que não seja a que comanda a enorme maquinaria”.8 Inspirados nas reflexões de Sfez, perguntamos: que mundo: que mundo é esse, afinal, que estamos construindo com nosso próprio engenho e criatividade?
Lacey •
 A Ciência Moderna é marcada pela existência de relações mutuamente reforçadoras entre a adoção das metodologias prioritárias na Ciência Moderna e a sustentação de valores vinculados ao aumento dos poderes humanos para intervir na natureza e controlá-la. Cedo, na tradição científica moderna, esse poder era vinculado à concepção metafísica do mundo como uma enorme e complexa máquina, já que a Ciência/ tecnologia representava o mundo à sua própria imagem. Contudo, a Ciência contemporânea não é mais assim. As leis da Mecânica Quântica, por exemplo, são probabilísticas em caráter, e o acaso (e a morte) desempenha um papel essencial na teoria da evolução. Nem os cientistas pensam o mundo e a natureza mais em termos de máquinas. Não obstante, existem pessoas que pensam que – por meio das nossas intervenções na natureza – podemos transformar o mundo num objeto que fica cada vez mais sob o nosso controle, como se as incertezas da implementação das inovações tecnocientíficas pudessem ser superadas ou controladas por novas inovações tecnocientíficas. Isso é simplesmente a húbris, a atribuição de poderes ao nosso próprio engenho e criatividade que não recebem nenhum apoio de nossa longa experiência em práticas de inovação tecnológica. Esse tipo de húbris não contribui em nada para construir um mundo que incorpore os valores da justiça social, sustentabilidade, bem-estar de todos e democracia participativa.

FILOSOFIA • Até que ponto o senhor acredita na ideia de que a biologia humana poderá, em algum momento, perder suas características primordiais e até mesmo se degenerar devido à intrusividade das tecnologias e tecnociências da contemporaneidade?
Lacey •
 O registro científico atual não fornece uma base forte para fazer especulações sobre essa questão, e não gosto de oferecer previsões sem base empírica razoavelmente forte. Geralmente, o interesse em especulações desse tipo está presente dentro daqueles que visam à exploração das possibilidades tecnocientífica sem limites e sem consideração com o seu potencial valor humano. Obviamente não sabemos quais possibilidades vão se tornar realizáveis no futuro. Em vez de fazer suposições a respeito disso, prefiro enfatizar a urgência de colocarmos energias na exploração das possibilidades que possam servir os valores da justiça social, sustentabilidade, bem-estar de todos e democracia participativa.

FILOSOFIA • Se é a concentração de riqueza que move a máquina tecnocientífica contemporânea, sempre a se potencializar acefalamente, o que nos garantirá que a civilização humana não possa ser tragada por suas próprias criações tecnológicas?
Lacey •
 A busca contínua das inovações tecnocientíficas, sempre em novos domínios, sob a influência de valores ligados à dominação da natureza, pode conduzir a consequências trágicas para a civilização. Não existem garantias na história. Precisamos continuamente indagar a respeito de áreas do conhecimento humano – tais como inteligência artificial, por exemplo –, se a pesquisa, desenvolvimento e inovação presentes nelas podem contribuir em relação aos valores que tenho enfatizado nesta entrevista; e, se necessário – como penso –, reorganizar a pesquisa à luz das respostas.

FILOSOFIA • No Brasil, por exemplo, onde, mesmo diante de tecnologias extraordinárias, esgotos correm a céu aberto e populações inteiras consomem águas não tratadas, como podemos falar de alta tecnologia, já que, na ponta da rede social, o tecido social se esgarça e se rompe devido ao abandono, à má vontade política e à improbidade com verba pública?
Lacey •
 Deve ser uma prioridade da tecnologia de ponta solucionar os problemas de saúde de grande número da população de baixa renda do mundo. Isso não acontecerá, porém, onde a pesquisa permanece sob o controle de interesses ligados ao capital e ao mercado; uma transformação solicitaria abordagens à pesquisa médica (a respeito, por exemplo, das causas ambientais de doenças, e participação popular em programas para a sua prevenção e tratamento) que não envolvam as mesmas metodologias daquelas que visam (e utilizam) às tecnologias de ponta. Certamente, não quero diminuir o valor de muitas tecnologias médicas e o esforço para o desenvolvimento de mais delas; para mim, a questão fundamental tem a ver com a comparação (agora, neste momento histórico) do valor delas com o valor dos desenvolvimentos potenciais que poderiam tratar diretamente as necessidades e os problemas da maioria pobre.

FILOSOFIA • Em seus escritos sobre os transgênicos, o senhor insiste sempre na salutar – diríamos nós – busca de alternativas? Qual seria a alternativa possível e viável em termos de aliar valores (humanísticos, bioéticos e ecoambientais) às atividades tecnocientíficas humanas?
Lacey •
 Escrevi frequentemente a respeito do caso dos transgênicos (uma inovação tecnocientífica típica).9 Indiquei que os transgênicos foram introduzidos na agricultura contemporânea por interesses vinculados ao capital e o mercado, sem, antes, tratar as questões relativas “ao campo das alternativas”.10 Quais métodos agrícolas – convencionais, transgênicos, orgânicos, agroecológicos, biodinâmicos, indígenas, de subsistência etc. – e em que combinações e com quais variações localmente-específicas, poderiam ser sustentáveis e suficientemente produtivos (quando acompanhado por métodos viáveis de distribuição) a fim de satisfazer as necessidades de alimentação e nutrição da população do mundo inteiro por um futuro previsível? Existem alternativas com capacidade produtiva pelo menos tão grande quanto a dos métodos transgênicos, e que poderiam satisfazer as necessidades de alimentação e nutrição em que métodos transgênicos podem ter pouca aplicabilidade (por exemplo, em pequenas propriedades agrícolas em regiões empobrecidas)? Quando essa questão é colocada, os méritos dos transgênicos precisam ser avaliados em comparação com aqueles das práticas agrícolas que não são baseadas nas inovações tecnocientíficas. A agroecologia, por exemplo, é um tipo de lavoura que tem muitos adeptos e sucessos no Brasil, e que almeja satisfazer – simultaneamente e numa balança determinada por fazendeiros e suas comunidades – uma variedade de objetivos (que refletem os valores da justiça social, sustentabilidade, bem-estar de todos e democracia participativa), inclusive de produtividade, sustentabilidade dos agroecossistemas e proteção da biodiversidade, a saúde dos membros das comunidades rurais e os seus arredores, e o fortalecimento da cultura e agência dos povos locais.11

FILOSOFIA • “De fato, as consequências da inovação tecnológica são quase sempre mais complicadas do que os inovadores esperavam”.12 Se a afirmação de Kneller é verdadeira, como administrar os riscos sempre iminentes de novas tecnologias e práticas antropotécnicas de extrema penetração e poder determinístico, como a manipulação do genoma humano, por exemplo?
Lacey • É certo que as consequências da inovação tecnológica frequentemente são mais complicadas do que os inovadores esperavam. Todas as inovações ocasionam consequências, que não são pretendidas e (frequentemente) não podem ser previstas ou antecipadas, e que podem ser potencialmente prejudiciais (bem como outras que podem ser benéficas). Porém, com tempo e pesquisa, muitas dessas consequências podem se tornar antecipáveis, e o fato de sempre haver consequências não antecipadas não fornece uma razão para ignorar esforços para antecipar qualquer uma que possamos conceber. No caso das inovações que certamente vão ocasionar consequências de grande significado ético – aquelas que envolvem a manipulação do genoma humano, por exemplo –, a prudência (e a ética) demanda a exploração séria das consequências antes da implementação de uma inovação, e também a formação de regulamentos designados para conter os efeitos prejudiciais; e demanda também o monitoramento contínuo das consequências atuais depois da implementação, para que a inovação possa ser retirada de uso se for demonstrado que causa prejuízos não aceitáveis. O Princípio de Precaução nos diz que as inovações devem ser administradas dessa maneira.13

FILOSOFIA • Criamos – escreve Edward O. Wilson – uma civilização de Guerra nas estrelas, com emoções da Idade da Pedra, instituições medievais e tecnologia divina”. Diante disso, por fim, como o senhor concebe o futuro da humanidade?
Lacey •
 O futuro da Terra será o resultado da ação coletiva humana. Não é algo determinado, e não pode ser antecipado em qualquer detalhe. Não é determinado que seja o resultado das trajetórias atuais das forças aliadas à inovação tecnocientífica, acompanhado dos valores do capital e do mercado. Pode ser esse o resultado; pode ser um desastre causado pelos desdobramentos dessas trajetórias; ou nem uma coisa nem outra. Todos nós temos responsabilidade com relação ao que o futuro será; e enfatizo a importância de acharmos maneiras de agir e colaborar uns com os outros para tentar criar um futuro que possa incorporar mais adequadamente os valores concernentes à justiça social, sustentabilidade, bem-estar de todos e democracia participativa. Eu não subestimo o poder dos interesses que impulsionam a trajetória dominante e as dificuldades envolvidas no desafio deles. Contudo, o futuro, que eu penso, digno de uma luta prolongada para se criar, é objeto de esperança. Se esse futuro vier a ser, será o resultado dos compromissos e das ações em colaboração daqueles cujas vidas expressem esses valores.

1 LACEY, H. Ciência, respeito à natureza e bem-estar humano, Scientiae Studia 6, n. 3, 2008, p. 297-327
2 LACEY, H. Reflections on science and technoscience, Scientiae Studia v. 10 (Special Issue), 2012, p. 103-128
3 LACEY, H. Valores e atividade científica 1. São Paulo: Associação Filosófica “Scientiae Studia”/Editora 34, 2008; Valores e atividade científica 2. São Paulo: Associação Filosófica “Scientiae Studia”/Editora 34, 2010
4 KRIMSKY, S. Science in the private interest: has the lure of profits corrupted biomedical research? Lanham: Rowman & Littlefield, 2003
5 Rede de Tecnologia Social. Disponível em: http://www.rts.org.br/?set_ language=pt-br&cl=pt-br
6 HABERMAS, 2004, p. 86
7 MORIN, 2001, p. 434
8 SFEZ, 1995, p. 110
9 P. ex., A controvérsia sobre os transgênicos: questões científicas e éticas. São Paulo: Editora Ideias e Letras, 2006
10 LACEY, H. Ciência, respeito à natureza e bem-estar humano, Scientiae Studia 6, n. 3, 2008, p. 297-327
11 ALTIERI, M. Agroecologia: a dinâmica produtiva da agricultura sustentável. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1998. Disponível em: http://www. embrapa.br/publicacoes/index_htm
12 KNELLER, G. 1980, p. 263
13 LACEY, H. O princípio de precaução e a autonomia da Ciência, Scientia Studia 4, n. 3, 2006, p. 373-392

Alexandre Quaresma é pesquisador de tecnologias e consequências socioambientais. É membro da Rede de Pesquisa em Nanotecnologia, Sociedade e Meio Ambiente, vinculado à Fundação Amazônica de Defesa da Biosfera e membro do Conselho Editorial de Ciência e Sociedade da Revista Internacional de Ciencia y Sociedad, do Common Ground Publishing. a-quaresma@hotmail.com

http://filosofiacienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/89/artigo302328-3.asp

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