APRESENTAÇÃO DA
COLETÂNEA E DO TEMA
Segundo o atual Código Penal brasileiro, é a seguinte a descrição do crime
de estupro: constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter
conjunção carnal ou praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato
libidinoso. Em síntese, são os coitos por via vaginal (conjunção carnal, na
linguagem codificada), anal ou oral (referidos como "outros atos
libidinosos", conforme a lei penal), praticados contra a vontade da vítima
e que podem ser reunidos sob a denominação genérica de atos de violação da
integridade sexual de outrem.
Em 2009, uma nova lei retirou o crime de estupro da seção de
crime contra os costumes, para enquadrá-lo nos crimes contra a liberdade
sexual, reconhecendo o direito da vítima de direcionar sua sexualidade de
acordo com sua vontade – e não segundo a prescrição social. O crime de estupro
também foi alterado de forma a reconhecer que se trata de uma relação de poder,
inclusive considerando que tanto mulheres quanto homens podem ser vítimas de
estupro.
Apesar dos contornos diversos pelos quais vem
passando, o estupro sempre ostentou uma característica peculiar e atemporal:
tem nas assimetrias de gênero seu alicerce, uma vez que está inegavelmente
imbricado às relações de poder construídas culturalmente.
No Brasil, casos de
estupros são frequentes, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança
Pública, no ano de 2012 os índices apontam 50.617 ocorrências, números que superaram os de
homicídios dolosos (que têm intenção de morte), cujas ocorrências giraram em
torno de 47.130 assassinatos. Numa
radiografia de acordo com os dados atuais da Saúde, divulgados pelo Ipea
(Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), ficou demonstrado que 50,7% das
vítimas de estupro no Brasil têm até 13 anos de idade. Os adolescentes (entre
14 e 17 anos) são vítimas em 19,4% dos casos.
As estatísticas revelam o perfil das
vítimas baseadas nas notificações feitas ao Sinan (Sistema de Informação de
Agravos de Notificação) em 2011 e demonstram que mais de 70% dos
estupros vitimaram crianças e adolescentes. O estudo conclui que o "dado é
absolutamente alarmante, uma vez que as consequências, em termos psicológicos,
para esses garotos e garotas são devastadoras". Ainda de acordo com a
pesquisa, 88,5% das vítimas eram do sexo feminino, 51% de cor preta ou parda e apenas 12% eram ou
haviam sido casadas anteriormente.
Em relação ao agressor das vítimas até 13
anos, 24,1% são os próprios pais ou padrastos e 32,2% são amigos ou conhecidos
da vítima. O estuprador desconhecido é maioria conforme a idade da vida
aumenta. "Na fase adulta, este responde por 60,5% dos casos. No geral, 70%
dos estupros são cometidos por parentes, namorados ou amigos/conhecidos da
vítima".
Apesar da consternação que os números
causam, a representação social do estupro tem suas variáveis. Não são raras às
vezes que no entendimento comum a relação vítima e estuprado é mediada por
noções conservadoras que não refletem os ideais que norteiam a vida de Estado
Democrático de Direito. É comum que a vítima, especialmente quando mulheres,
sejam tomadas como facilitadores e até mesmo como provocadoras do ato criminoso
que sofreram. A representação da vítima, não faz parte apenas do nosso cenário
nacional.
Até 1975,
época em que a feminista norte-americana Susan
Brownmiller lançou
seu livro Against Our Will: Men, Women, and Rape (Contra Nossa vontade:
Homens, mulheres e estupro) obra
esta que se tornaria um marco na defesa pelos direitos femininos, havia uma
cultura de que a mulher poderia ter contribuído com o estupro, caso não tivesse
tentado resistir. Assim, até então, quando uma mulher era violentada, tinha de
provar que havia tentado resistir. Também levava- se em consideração a maneira
como a vítima estava vestida e até mesmo sua vida pregressa. Considerava-se que
se a mulher estivesse vestida de forma tida como provocante, isso seria uma
atenuante para o agressor. Da mesma forma, se ela tivesse vários parceiros
também. A obra de Susan Brownmiller, abordava o estupro como sendo uma forma de
violência, poder e opressão masculina e não de desejo
sexual. Segundo ela, o estupro seria uma forma consciente de manter
as mulheres em estado de medo e intimidação.
No Brasil, tal situação se tornou alarmante após
a divulgação da Pesquisa do IPEA em que 65% dos brasileiros consideraram que
“mulher que usa roupa que mostra o corpo merece
ser atacada”. Os dados foram reconsiderados pelo Instituto que reconheceu
falhas na amostragem e condução da pesquisa, apontando que esse índice está às
voltas de 26% da população. Contudo, o percentual é elevado. Para se ter um
parâmetro, significa que num contingente de 100 pessoas, 26 apóiam a ideia de
culpa relativa da vítima.
A Pesquisa do IPEA gerou polêmica e provocou
reações que tomaram conta das redes sociais e mídia, como, por exemplo a
campanha “NÃO MEREÇO SER ESTUPRADA”.
A seguinte coletânea de textos trata do assunto.
Espera-se que o aluno desenvolva uma dissertação clara, coesa e coerente , o
que lhe confere leitura atenta da coletânea, abertura crítica ao tema e
capacidade de entendimento do debate público pertencente a sua vida enquanto
cidadão, sobre o seguinte tema:
“O que a campanha ‘Não mereço ser estuprada’ e as reações a
ela mostram sobre as relações entre os gêneros no Brasil atual?”
|
COLETÂNEA
TEXTO
1
Quando as brasileiras já estavam indignadas com os abusos
sofridos no transporte público e com o descaramento de grupos de “encoxadores”
que se reuniam no Facebook para trocar dicas sobre como assediar mulheres, uma
nova notícia mostrou que não há limites para a boçalidade. Na semana passada, o
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou uma pesquisa em que
65,1% de quase 4 mil entrevistados responderam que mulheres que mostram o corpo
“merecem ser atacadas” – nesta sexta-feira, o Ipea anunciou
que esse percentual era, na realidade, 26%. Outros 58,5% dos entrevistados concordaram com a frase “Se as mulheres
soubessem como s se comportar, haveria menos estupros”. Para quase dois
terços de quem foi ouvido na pesquisa, segundo a versão inicial do
levantamento, as vítimas são
culpadas. Apenas uma
minoria parece acreditar no óbvio: nenhuma mulher merece ser estuprada, e suas
roupas ou seu comportamento não dão nenhum tipo de razão a seus agressores.
Em vez de tolerar a ofensa, mulheres indignadas com o resultado da pesquisa decidiram reagir. A notícia provocou comoção nas redes sociais. Uma campanha organizada no Facebook pela jornalista Nana Queiroz convidou usuárias da rede social a publicar suas fotos acompanhadas da frase “Eu não mereço ser estuprada”. Mais de 40 mil mulheres confirmaram a participação no protesto. Artistas como Valesca Popozuda, Juliana Paes, Claudia Leitte e Daniela Mercury aderiram ao movimento. “Homens que atacam mulheres são monstros”, diz Valesca. “Já cansei de andar em ônibus apertado e de ficar com o cotovelo para trás para não encostarem em mim, ou de passar perto de grupos de homens e sofrer algum assédio. No Carnaval, tinha de ter o cuidado de não andar sozinha, pois muitos se achavam no direito de passar a mão”, afirma Daniela. “Aderi à campanha porque as mulheres precisam mostrar que têm consciência de seus direitos e porque não aceito o machismo e a violência.” A presidenteDilma Rousseff também manifestou apoio à campanha. “Nenhuma mulher merece ser vítima de violência, seja física ou sob a forma de ameaça. O governo e a lei estão do lado de Nana Queiroz e das mulheres ameaçadas ou vítimas de violência”, disse ela em seu perfil no Twitter. O movimento foi noticiado na imprensa internacional, em sites como o Huffington Post, Al Jazeera e BBC. [...]
Em vez de tolerar a ofensa, mulheres indignadas com o resultado da pesquisa decidiram reagir. A notícia provocou comoção nas redes sociais. Uma campanha organizada no Facebook pela jornalista Nana Queiroz convidou usuárias da rede social a publicar suas fotos acompanhadas da frase “Eu não mereço ser estuprada”. Mais de 40 mil mulheres confirmaram a participação no protesto. Artistas como Valesca Popozuda, Juliana Paes, Claudia Leitte e Daniela Mercury aderiram ao movimento. “Homens que atacam mulheres são monstros”, diz Valesca. “Já cansei de andar em ônibus apertado e de ficar com o cotovelo para trás para não encostarem em mim, ou de passar perto de grupos de homens e sofrer algum assédio. No Carnaval, tinha de ter o cuidado de não andar sozinha, pois muitos se achavam no direito de passar a mão”, afirma Daniela. “Aderi à campanha porque as mulheres precisam mostrar que têm consciência de seus direitos e porque não aceito o machismo e a violência.” A presidenteDilma Rousseff também manifestou apoio à campanha. “Nenhuma mulher merece ser vítima de violência, seja física ou sob a forma de ameaça. O governo e a lei estão do lado de Nana Queiroz e das mulheres ameaçadas ou vítimas de violência”, disse ela em seu perfil no Twitter. O movimento foi noticiado na imprensa internacional, em sites como o Huffington Post, Al Jazeera e BBC. [...]
[...] Mesmo que os
resultados sejam questionáveis, as reações à repercussão da pesquisa mostram
que eles não estão distantes da realidade brasileira. No Facebook, páginas de
humor faziam piadas sobre estupro. Grupos machistas reuniam fotos das
participantes da campanha para fazer montagens e expô-las como objetos sexuais.
A organizadora da campanha passou a sofrer ameaças de agressão e estupro.
“Chegaram a me mandar mensagens dizendo que sabiam o endereço do meu trabalho”,
diz Nana. “No Facebook, vi mensagens que diziam que a campanha era satanista,
que queríamos desvirtuar as mulheres de Deus e que merecíamos apanhar
se saíssemos na rua.” Outras mulheres que aderiram ao protesto foram alvo
de assédio virtual. Para a ministra Eleonora Menicucci, da Secretaria de
Políticas para as Mulheres, o resultado não pode ser ignorado. “Os dados da
pesquisa precisam ser analisados com cuidado. No geral, revelam uma sociedade
ainda machista, patriarcal e preconceituosa, em que as mulheres são
consideradas propriedade dos homens”, diz. Estatísticas sobre a violência no
país mostram que há motivo para preocupação. Em 2012, o número de casos de
violência sexual cresceu 2,1% em relação ao ano anterior e superou o número de
homicídios. A realidade pode ser muito pior. Segundo o Ipea, apenas 10% dos
estupros são relatados à polícia. A maior parte das vítimas não procura a
Justiça.
“Vivemos
numa cultura do estupro que atribui a culpa à vítima. Sabemos disso
independentemente dos dados da pesquisa”, afirma Lola Aronovich, criadora do
blog feminista Escreva Lola Escreva e professora da Universidade Federal do
Ceará (UFC). Faz parte da cultura do estupro, segundo ela, dizer que é paranoia
feminista a realidade violenta e machista do dia a dia. Cultura do estupro é
rir de piadas como: “Homem que estupra mulher feia não merece cadeia, e sim um
abraço”. Cultura do estupro é tolerar a ação dos encoxadores, que mantêm o
hobby perverso de assediar sexualmente mulheres no transporte público lotado e
trocam dicas sobre o assunto no Facebook. Cultura do estupro é vender camisetas
que dizem que a “fórmula do amor” é embebedar mulheres para conseguir sexo sem
resistência. Cultura de estupro são anúncios de preservativos que afirmam que
sexo sem consentimento queima mais calorias ou comerciais de cerveja com
cantadas e passadas de mão em corpos femininos quase nus.
[...} Ao criar uma rede de solidariedade para mulheres que sofrem com o machismo, campanhas on-line como “Eu não mereço ser estuprada” podem servir como ponto de partida para mudanças culturais. “Quando estamos juntos, mesmo que de forma virtual, conseguimos retomar nossa voz e ter mais força do que se fôssemos sozinhas”, diz Juliana de Faria, criadora da campanha on-line “Chega de fiu-fiu”, que combate o assédio sexual em locais públicos. A campanha ganhou alcance nacional, quando ÉPOCA publicou, em setembro, seu manifesto acompanhado dos resultados de uma pesquisa em que 99,6% das entrevistadas diziam ter ouvido cantadas indesejadas em ambientes públicos e 85% ter recebido “passadas de mão” contra sua vontade. “Ações que começam no mundo virtual acabam tendo consequências no mundo real”, afirma Julian (Fragmentos da matéria “Nem elas nem ninguém merece...a boçalidade daqueles que condenam as vítimas por ser estupradas. Indignadas, mais de 40 mil mulheres decidiram reagir na internet” – 2014- Em: http://migre.me/jQm9J. Acesso em: 14/06/2014).
[...} Ao criar uma rede de solidariedade para mulheres que sofrem com o machismo, campanhas on-line como “Eu não mereço ser estuprada” podem servir como ponto de partida para mudanças culturais. “Quando estamos juntos, mesmo que de forma virtual, conseguimos retomar nossa voz e ter mais força do que se fôssemos sozinhas”, diz Juliana de Faria, criadora da campanha on-line “Chega de fiu-fiu”, que combate o assédio sexual em locais públicos. A campanha ganhou alcance nacional, quando ÉPOCA publicou, em setembro, seu manifesto acompanhado dos resultados de uma pesquisa em que 99,6% das entrevistadas diziam ter ouvido cantadas indesejadas em ambientes públicos e 85% ter recebido “passadas de mão” contra sua vontade. “Ações que começam no mundo virtual acabam tendo consequências no mundo real”, afirma Julian (Fragmentos da matéria “Nem elas nem ninguém merece...a boçalidade daqueles que condenam as vítimas por ser estupradas. Indignadas, mais de 40 mil mulheres decidiram reagir na internet” – 2014- Em: http://migre.me/jQm9J. Acesso em: 14/06/2014).
TEXTO 2
[...]
os homens do mundo patriarcal devem pautar-se de forma sexualmente livre – e
até libertina! – devido à posição de superioridade e independência que lhes
cabe. Devem ser, portanto, rígidos, másculos e dominadores. Por sua vez, às
mulheres resta a necessidade de resguardar sua moral sexual, agindo de forma
efetivamente recatada. Suas vestimentas, seus diálogos e seus comportamentos
devem revestir-se da cautela necessária a ensejar o respeito do seio social.
Seu corpo não é considerado sua propriedade, senão verdadeiro objeto de
controle da sociedade. Qualquer inadaptação ou desvio de conduta corre o risco
de ser duramente criticada/o ou discriminada/o socialmente: elas podem se
tornar “putas” e “galinhas” (em razão de uma vida sexual ativa), ou “sapatões”,
“machonas” ou“freiras” (como categoria de acusação em alusão à castidade para
as que se recusam a aderir à prática sexual por imposição do parceiro); e eles,
“bichas”, “veados”, “mulherzinha”, “maricas”. Em suma, há modelos de gênero
rigidamente estabelecidos que inspiram representações e práticas sociais para
jovens de cada sexo [...] (O estupro como crime de gênero e suas implicações na
prática jurídica – Rebeca N. A. Lima – 2013- p. 6. Em: http://migre.me/jQkTY.
Acesso em: 14/06/2014).
TEXTO 3
[...] Nessa estrutura (social antiquada que determina papéis de
gênero fixos), a forma utilizada para constranger mulheres a se submeter aos
homens está no controle do corpo e de sua sexualidade: deveriam ser virgens ou
sexualmente recatadas, não deveriam usar determinadas roupas ou frequentar
certos locais. E a punição para as que não aceitassem era a legitimação da
violência por meio de hostilidade e, em casos extremos, estupro e morte. Ou
seja, a cultura do estupro é o processo de constrangimento social que garante a
manutenção dos papéis de gênero. Não é uma ação individual (como se todo homem
odiasse mulheres), mas uma convenção social que mantém determinados papéis e
estruturas sociais [...] (Sobre a Cultura
do Estupro- Cynthia Semíramis – Revista Fórum – Abril, 2013. Em:
http://migre.me/jQkOf Acesso em 14/06/2014)
TEXTO
4 [...] Considerando que
o estupro, assim como todas as outras agressões sexuais cometidas contra as mulheres se ligam a uma relação de força e agressividade
do homem contra a mulher; - Que todas as agressões sexuais supõem um tipo de
relação de dominação homem-mulher, sintomática de certa escolha da sociedade; -
Que elas não podem ser analisadas como uma infração banal ou mesmo de direito
comum; - Que, consciente ou inconscientemente, um mundo de valores masculinos
justificou efetivamente o estupro pela ‘natural virilidade agressiva’ do homem
e pela ‘passividade masoquista’ da mulher, noções que procedem de uma espécie
de fatalidade fisiológica; - Que esse esquema explica a culpabilização e o
mutismo das mulheres estupradas; [...]” (História do Estupro- Georges
Vigarello- Jorge Zahar Editor, 1998- p. 211).
TEXTO 5 [...]Talvez seja hora de assumirmos explicitamente
que nossas propostas sobre as “mulheres” não são baseadas numa realidade dada
qualquer, mas que elas surgem de nossos lugares na história e na cultura; são
atos políticos que refletem os contextos dos quais nós emergimos e os futuros
que gostaríamos de ver. (Interpretando o
Gênero – Linda Nicholson – Revista de estudos feministas v.8- 2000- p.30. Em:
http://migre.me/jQl8B. Acesso em:
14/06/2014 )
IMAGEM 1
Em:http://migre.me/jQlfy.
Acesso em: 14/06/2014
IMAGEM 2 - Em: eunaomerecoserestupradadenuncia.tumblr.com.
Acesso em 14/06/2014
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